Moçambique e os Desafios para Negociar o Seu Próprio Futuro
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A soberania económica começa na capacidade e ética de quem nos representa.
Por António Souto
Com este texto concluo uma série de cinco artigos sob o tema Repensar Estratégias de Desenvolvimento, que iniciei há vários semanas no semanário Savana. O propósito sempre foi o mesmo: contribuir para um debate sereno, informado e construtivo sobre o futuro de Moçambique.
Ao longo desta série procurei revisitar a nossa trajetória económica e institucional desde a independência, analisando os sucessivos ciclos — o da planificação centralizada, o da liberalização acelerada (as chamadas terapias de choque) e o das medidas pós-dívidas ocultas em busca da retoma de uma economia ainda dependente — mas sempre com a mesma pergunta de fundo: por que razão, cinquenta anos depois, ainda não conseguimos transformar o crescimento em desenvolvimento inclusivo e partilhado?
UM DEBATE À ALTURA DOS 50 ANOS DE INDEPENDÊNCIA
A ocasião para encerrar esta reflexão foi particularmente simbólica. Refiro-me à Conferência Anual do Observatório do Meio Rural (OMR), realizada a 7 de outubro em Maputo, dedicada aos 50 anos de independência.
Foi um espaço de debate vivo, com vozes diversas, olhares críticos e esperança no futuro. Entre essas vozes, destacou-se a do Dr. Joseph Hanlon, autor de dezenas de estudos sobre Moçambique, que se perguntou se o país poderia evitar uma “Revolução dos Jacarandás”.
A sua palestra — densa, informada e frontal — traçou um quadro duro do presente e projetou a inquietação de um futuro incerto. Hanlon lembrou que os sistemas políticos perdem legitimidade quando deixam de ouvir o seu povo. Falou da Roménia, do Bangladesh e do Zimbabwe, comparando-os a Moçambique.
Expôs as desigualdades crescentes, a concentração do poder económico e a frustração dos jovens. E perguntou se estaríamos nós a caminho de uma ruptura semelhante. No seu entender, o país corre o risco de ver nascer uma revolução pacífica, mas inevitável, se continuar a ignorar os sinais de exaustão moral e política. Chamou-lhe “Revolução dos Jacarandás” — símbolo de ruptura, mas também de renascimento.
ENTRE A CRÍTICA EXTERNA E A RESPONSABILIDADE NACIONAL
Não partilho de todos os seus juízos, mas reconheço a importância das suas advertências. Hanlon enfatiza o papel destrutivo das políticas impostas de fora — do FMI, do Banco Mundial e dos grandes doadores internacionais — e mostra como essas instituições moldaram, ao longo de décadas, uma economia dependente e uma elite cooptada.
Essa leitura contém muito de verdadeiro, mas não é toda a verdade. As responsabilidades externas existem, mas não explicam tudo.
A meu ver, é preciso reconhecer de forma mais explícita a responsabilidade nacional. Foram dirigentes moçambicanos que aceitaram, executaram e muitas vezes beneficiaram dessas políticas. Foram eles que conduziram privatizações mal preparadas, alimentaram esquemas de corrupção e contraíram dívidas ruinosas em nome do povo.
As pressões externas existiram e continuam a existir. Mas a falta de capacidade interna para as negociar é que as tornou devastadoras.
O “MAR ALTO E TORMENTOSO” DE NYERERE
Na conferência, uma das intervenções que mais me marcou foi a recordação feita pelo filósofo Severino Ngwenha, ao evocar as palavras de Julius Nyerere poucos dias após a nossa independência. Nyerere avisou que Moçambique iria atravessar “um mar alto e tormentoso”.
Meio século depois, continuamos nesse mar, procurando equilíbrio entre ondas de esperança e tempestades de desilusão. Ngwenha dizia que esta travessia só se tornará mais segura quando aprendermos a navegar melhor.
E navegar melhor, no contexto de hoje, significa negociar melhor — com lucidez, com preparação e com uma consciência firme do que está em jogo.
Negociar não é apenas técnica, é soberania. O que falta a Moçambique, mais do que recursos ou planos, é capacidade negocial nacional: mais dirigentes públicos capazes de ler um contrato, compreender as implicações financeiras de uma cláusula, antever riscos e defender os interesses do país com firmeza e visão.
Falo de negociação em sentido amplo — com parceiros externos e também dentro de casa, entre Estado e sociedade. Sem essa capacidade, acabamos por aceitar condições impostas e perder a margem de manobra que define a independência real assente numa forte coesão nacional.
GEOPOLÍTICA E LIDERANÇA COM CORAGEM
Durante o painel que coordenei, intitulado “Desenvolvimento e geopolítica, políticas públicas e investimento externo e crescimento económico”, defendi que o desenvolvimento deixou de ser apenas um assunto interno. Hoje é profundamente condicionado pela geopolítica global.
As disputas por recursos estratégicos, o reposicionamento das grandes potências, as novas rotas do comércio e da energia, e a reconfiguração das cadeias de valor estão a redefinir oportunidades e riscos. Para países como Moçambique, isso exige Estados com visão, capacidade negocial e coerência nas políticas públicas.
Um dos convidados, o professor Fernando Jorge Cardoso, resumiu a questão: “É preciso que os nossos dirigentes estejam tecnicamente capacitados e, sobretudo, tenham vontade política firme de proteger os interesses nacionais.”
Essa frase traduz uma verdade simples e dura: não basta ter programas, é preciso ter quem saiba e queira defendê-los.
A ÉTICA E O CONHECIMENTO COMO ARMAS DE SOBERANIA
Nos últimos 50 anos acumulámos fragilidades que se repetem: acordos mal negociados, contratos sem transparência, megaprojetos que prometem desenvolvimento e deixam atrás de si dependência.
Em nome da modernização, o país foi cedendo controlo sobre os seus próprios recursos — minerais, energéticos, financeiros. O resultado é um Estado que se endivida para financiar projetos de outros e elites nacionais e estrangeiras que prosperam sem produzir.
É do senso comum que a corrupção é um cancro sério e espalhado. Mas, o problema não está apenas na corrupção. Está também na fragilização e impreparação institucional de importantes entidades públicas e na ausência de cultura de negociação estratégica.
Aprender a negociar não é desconfiar do mundo. É participar nele em pé de igualdade. Quando Moçambique se senta à mesa com o FMI, com um banco de desenvolvimento ou com uma multinacional, deveria saber fazê-lo com a mesma preparação, informação e confiança que o interlocutor.
Isso requer investimento em quadros públicos, universidades alinhadas com as necessidades reais da governação e coordenação acima das fronteiras partidárias. Precisamos de formar negociadores públicos — economistas, juristas, gestores e diplomatas — que conheçam o valor do país e saibam traduzi-lo em compromissos sustentáveis.
Precisamos também de mudar o modo como exercemos o poder. A negociação não é apenas técnica, é ética. Quem negoceia em nome de Moçambique tem de ter mãos e consciência limpas.
Negociar bem exige integridade e coragem: a coragem de dizer não, quando é preciso; de adiar um contrato, quando as condições são injustas; e de explicar ao povo porque se tomou uma decisão difícil. A liderança que o país precisa é a que combina competência técnica com coragem moral.
APRENDER A GOVERNAR O LEME
Muitos dos erros do passado nasceram de decisões tomadas com pressa, sem estudo e sem debate. Os termos impostos nos programas de ajustamento estrutural — em especial as privatizações dos bancos — resultaram da arrogância de instituições internacionais perante a fragilidade de um Governo sem recursos, gerindo uma economia destruída pela guerra por procuração que nos foi imposta. Ainda pagamos caro por essa submissão e pela impreparação.
Porém, outros erros foram cometidos já neste século, quando o entusiasmo pelos megaprojetos eclipsou a prudência e a noção de que recursos naturais não significam desenvolvimento garantido.
Continuamos a confundir assinatura de contratos e folclore de inaugurações com progresso e promessa de investimento com prosperidade. Não é assim que se constrói soberania.
Hoje, ao celebrar meio século de independência, deveríamos fazer um balanço honesto. Os progressos existem, mas continuam frágeis. Há mais alfabetizados, mas o número de pobres está a crescer; há mais escolas, mas há mais pais sem condições de manterem os seus filhos nas escolas nem conseguirem adquirir a cesta básica de segurança alimentar da família; há cada vez mais projectos mineiros e investimentos em negócios de exportação de matérias-primas, mas há cada vez mais jovens que não conseguem um emprego formal. Há cada vez mais jovens abandonados nas ruas das cidades e nas aldeias de todo o país que, como seres humanos com a vitalidade da juventude estão determinados a buscar algo diferente.
Nos quatro anteriores artigos analisei os diferentes desafios desde a geração da independência, falei da questão central da geração de emprego, dos problemas do sistema financeiro pouco inclusivo, da urgência de uma visão mais articulada para o desenvolvimento do capital humano. Saber navegar no “mar alto e tormentoso” que esses desafios exigem é o nosso destino que precisa de lideranças capazes de com humildade querer aprender a governar o leme.
A VERDADEIRA REVOLUÇÃO
Gosto de pensar que uma parte da “Revolução dos Jacarandás” de que fala Hanlon pode ser entendida não como um colapso, mas como uma viragem de consciência. Uma revolução pacífica, feita de exigência cívica, de liderança responsável e de juventude informada.
Uma revolução que substitua a dependência pela competência, a submissão pela negociação e o medo pelo diálogo. Essa seria, de facto, a revolução de que Moçambique precisa.
Concluo esta série com duas convicções simples: Sem maior capacidade negocial nacional — técnica, ética e política — não haverá desenvolvimento. A ética é o primeiro passo da reconstrução do Estado: sem ética, não há soberania; sem soberania, não há desenvolvimento; e sem desenvolvimento inclusivo, não há liberdade verdadeira.
A independência conquistou-se com armas. A soberania económica só se conquistará com conhecimento e carácter. E talvez essa seja a verdadeira travessia que nos espera — não a de um mar calmo, mas a de um povo que aprendeu, finalmente, a negociar o seu próprio futuro.
Publicado no Savana, edição 1657
