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Da Utopia à Oligarquia: O Sarilho que Hanlon nos Obriga a Enfrentar

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Da Utopia à Oligarquia: O Sarilho que Hanlon nos Obriga a Enfrentar

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Por António Souto

Confesso que foi com alguma leviandade que aceitei o convite do Observatório do Meio Rural para fazer a apresentação do livro de Joseph Hanlon – “Moçambique recolonizado através da corrupção”. Aceitei-o por respeito à actividade do OMR e por amizade de 45 anos com Joseph Hanlon, sem ainda ter lido o livro. Quando finalmente o li — e voltei a lê-lo — percebi que estava metido num verdadeiro sarilho.

E digo isto porque ao longo das 350 páginas desta obra revi-me, página a página, nas vivências da minha geração — a geração que acreditou, em 1975, ser possível construir uma sociedade mais igualitária, e que depois assistiu, quase impotente, à sucessão de choques e desilusões que moldaram o país nos últimos quarenta anos.

Conheço o Joe desde 1979, quando eu era jornalista do Notícias e ele correspondente da BBC. Ele acompanhou Moçambique com uma fidelidade rara — nunca como observador distante, mas como alguém que quis compreender o que correu bem e o que correu mal.

Nos anos 90, quando transitei para o que costumo chamar “o negócio de sonhar e tentar implementar instituições e projectos de desenvolvimento” — e que me levou à criação da Gapi em 1990 — fui buscar a um dos seus primeiros livros, “Mozambique: Who Calls the Shots? “(1991), ideias e conceitos que me ajudaram a perceber as forças que moldavam as políticas económicas do país.

Seguiram-se outros trabalhos que permanecem na minha estante de consulta, em particular “Paz sem Benefício”, “Galinhas e Cerveja” e “Há mais bicicletas, mas há desenvolvimento? “ (2008), publicado duas décadas depois do início das políticas neoliberais impostas pelo FMI sob o nome de PRES.

Um livro difícil e necessário

Este novo livro tem um título que inquieta — “Moçambique Recolonizado através da Corrupção: Como o FMI criou um Estado Oligárquico”. Mas não é um título panfletário. É uma tese rigorosa, sustentada por centenas de documentos, entrevistas e factos — muitos deles nunca revelados.

Hanlon mostra, com paciência de investigador e coragem de jornalista, como nesse tempo as instituições de Breton Woods impuseram a Moçambique políticas de choque neoliberais de austeridade, liberalização e privatizações.

Essa combinação destruiu o que restava de um projecto de desenvolvimento inclusivo e abriu o caminho para uma elite que se apropriou de bens públicos, confundindo o interesse do Estado com os seus interesses particulares. Foi o início da formação de uma oligarquia — um poder económico e político concentrado em poucas mãos.

Hanlon demonstra que o silêncio cúmplice de um bom número de doadores, frequentemente condicionados pela pressão do FMI, foi parte do problema. As instituições internacionais premiavam a obediência técnica às reformas, mesmo quando elas geravam pobreza, desigualdade e corrupção.

Enquanto a ajuda crescia, também cresciam o saque e a impunidade. Os assassinatos de Siba Siba Macuácua e de Carlos Cardoso simbolizaram o preço pago por quem acreditava que ainda era possível ter integridade num sistema capturado.

O período de privatização dos bancos – Banco Comercial de Moçambique e Banco Popular de Desenvolvimento – foi para mim o momento mais trágico e revelador dessa transição. O caso da privatização do BPD e sua conversão em Banco Austral expôs, de forma brutal, a captura de instituições e o preço da integridade. O assassinato de Siba Siba Macuácua, em 2001, e o de Carlos Cardoso, meses antes, mostraram que a corrupção deixara de ser apenas económica — tornara-se política e letal. A impunidade dos mandantes e executores desses crimes marcou, como o próprio Hanlon escreve, o ponto sem retorno: o momento em que o Estado moçambicano deixou de proteger os honestos e passou a proteger os cleptocratas.

A dor de quem viveu por dentro

Ao ler este livro, senti-me confrontado com a minha própria memória. Revivi os anos em que o Estado ainda acreditava que planear e educar eram actos de libertação. E revivi também o choque de ver as instituições públicas submetidas a medidas impostas de fora, em nome de uma “modernização” e o modelo imposto de “liberalização do mercado” que destruiu as indústrias do país e empobreceu milhões.

As privatizações foram vendidas como racionalidade económica, mas na prática significaram transferência de poder e património para um punhado de privilegiados. O FMI falava de “ajustamento”, mas o que se ajustou foi a nossa capacidade de construir uma sociedade mais justa.

As cinco ondas de choque

Hanlon identifica cinco grandes ondas de choque das políticas liberais que nos trouxeram até aqui. Permitam-me partilhar a minha leitura pessoal dessas ondas.

A primeira, com a austeridade e as privatizações — privatizações *para quem*, se de facto, devido à natureza da colonização e da descolonização, não tínhamos as bases mínimas de um sector privado nacional?

A segunda, com a destruição do sector produtivo nacional — os milhares de postos de trabalho perdidos com o encerramento abrupto das indústrias do caju, dos têxteis e da Mabor entre outras são feridas ainda abertas de um tempo de medidas incongruentes com a realidade de um país emergente.

A terceira, com a transformação de dirigentes em “oligarcas compradores” — foi um processo de captura de instituições e decisores, para garantir o alinhamento com políticas de alienação da soberania.

A quarta, com os megaprojectos que não deixam riqueza local — com os “compradores” já alinhados, as matérias-primas passaram a ser apenas para exportar, sem efeito multiplicador interno.

E a quinta, a mais recente, com a guerra em Cabo Delgado — expressão violenta de um modelo que excluiu a juventude. Com tanta frustração e exclusão social, o rastilho da “bomba da riqueza” de uns poucos acabou por ser despoletado.

O espelho e o desafio

Este é um livro que nos obriga a olhar no espelho. Não é um livro contra Moçambique — é um livro *para* Moçambique. Obriga-nos a perguntar: como deixámos que a independência se transformasse em dependência?

Hanlon não escreve para humilhar. Escreve para despertar. Mostra que o Estado oligárquico não nasceu apenas de ganância interna, mas de uma engenharia política e económica internacional que beneficiou os poderosos e sacrificou os fracos.

Para quem, como eu, acreditou e continua a acreditar no papel de instituições nacionais de desenvolvimento — como a Gapi — o livro é um alerta: não basta boas intenções. É preciso proteger as instituições públicas e mistas das forças que as querem capturar.

Em Conclusão – O que fazemos agora?

Apresentar este livro não é um acto literário nem de homenagem. É um gesto de responsabilidade cívica.

Hanlon demonstra que a corrupção não é apenas um desvio moral — é um mecanismo político de recolonização interna, um sistema de dependências que transforma o Estado num intermediário entre o capital estrangeiro e a pobreza local.

E lembra-nos que há uma nova geração que não se cala — que nas redes sociais, nas universidades, nas associações e nas ruas começa a exigir futuro.

Termino com uma pergunta que o livro me deixa e que vos deixo também:
“O que estamos a fazer, cada um de nós, para que Moçambique não se recolonize a si próprio?”

E acrescento —como nota pessoal — que a ética é o primeiro passo da reconstrução do Estado. Sem ética, não há soberania; sem soberania, não há desenvolvimento; e sem desenvolvimento inclusivo, não há liberdade verdadeira.

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