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Da conta no telemóvel ao emprego digno: o que falta à inclusão financeira

Opinião

Da conta no telemóvel ao emprego digno: o que falta à inclusão financeira

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Repensar a estratégia de desenvolvimento Inclusivo de Moçambique (3)

Por António Souto*

Introdução

A inclusão financeira é chave para o desenvolvimento inclusivo.¹ Esta frase abre o Handbook on Best Policies and Practices for SME Financing in the SADC Region, documento elaborado com o apoio do SADC Support Consortium, onde a Gapi teve a oportunidade de participar, e em cuja equipa técnica se destacou Sithembile Maunze. Com este artigo damos continuidade ao anterior sobre desemprego (Emprego, Inclusão e Desenvolvimento Rural: Para onde queremos ir?) argumentando agora que sem inclusão financeira real, não haverá empresas resilientes nem empregos dignos capazes de reduzir a pobreza.

O mito do sucesso do mobile money

Muito se tem celebrado a “revolução” do mobile money. De facto, a Estratégia Nacional de Inclusão Financeira 2025–2031 (ENIF) reconhece que o número de contas móveis já ultrapassa largamente o de contas bancárias². Mas convém perguntar: mais contas móveis significam mais PMEs sustentáveis e empregos dignos?

A resposta, por enquanto, é não. Os números são claros: a pobreza voltou a crescer nos últimos anos, superando 46% da população em algumas estimativas; o setor informal absorve a grande maioria da força de trabalho urbana continuando a crescer em valor absoluto e em proporção à variação da força de trabalho formalizada; e a economia mostra incapacidade estrutural de gerar empregos formais e dignos para a juventude, que continua a entrar no mercado de trabalho em centenas de milhares por ano.

Em vez de fortalecer a produção e o empreendedorismo, o mobile money tem alimentado sobretudo transações de baixo valor e nano-loans, pequenos créditos de curtíssimo prazo orientados para consumo imediato que, sem negar o seu contributo para a sobrevivência no dia-a-dia de milhões de famílias de baixo rendimento, pouco ou nada contribui para a capitalização de start-ups ou pequenas empresas produtivas.

Metas da ENIF: ambição que precisa de tradução prática

A ENIF estabeleceu metas para 2031: 60% da população adulta com acesso a serviços financeiros formais, 30% da população rural com pelo menos um produto adequado e 20% de adultos a usar crédito formal³.

No primeiro caso — número de contas abertas — o risco é termos estatísticas de contas vazias, sem impacto produtivo. Mas nos dois outros casos o desafio é ainda maior: quem vai desenhar e implementar produtos adequados para o meio rural, sem presença no terreno e sem conhecimento cultural das comunidades? E como é que as instituições de crédito vão poder evoluir para servir cerca de 3,3 milhões de adultos (20% de adultos > 18 anos) hoje e 3,6 milhões em 2030 com crédito formal, sem gerar crises no sistema financeiro?

Na nossa opinião isso só será possível com profundas mudanças no ecossistema financeiro e nos procedimentos regulatórios, reforçando microfinanças, fundos de garantia e instituições financeiras de desenvolvimento (IFDs) com implantação rural.

Estudo SPEED/USAID: a regulação como obstáculo

Um estudo recente, produzido pelo Projeto SPEED no âmbito do programa MPMEs Resilience Fund, cofinanciado pela USAID e pela Gapi, e elaborado por Alberto Didoni, consultor do SPEED, alerta de forma inequívoca: “a aplicação rígida de normas como Basileia II e III, sem adaptação à realidade moçambicana, penalizou as microfinanças e limitou o alcance de instituições que poderiam servir os mais pobres.”⁴

Em vez de reforçar a estabilidade do sistema, a regulação desenhada para grandes bancos internacionais acabou por fragilizar operadores locais. Muitas cooperativas e sociedades de microcrédito desapareceram, deixando comunidades inteiras sem alternativas credíveis. A regulação tornou-se barreira, não ponte.

Descentralização politizada: exclusão reforçada

A exclusão financeira não resulta apenas de falhas técnicas. É também consequência da forma como se governa e descentraliza. O Handbook for SME Financing in the SADC Region enfatiza: “a inclusão financeira exige governação descentralizada e instituições locais responsáveis” ⁵. No entanto, como sublinha Salvador Forquilha em The Political Stakes of Decentralisation, a descentralização em Moçambique tem sido limitada e capturada: “foi usada mais como instrumento de gestão de conflitos do que de promoção de desenvolvimento local”⁶. O novo FDEL (Fundo de Desenvolvimento da Economia Local ) será diferente?

Assim, em vez de aproximar os serviços das comunidades, a descentralização politizada tem servido para reforçar práticas clientelares. O resultado é um sistema financeiro público que responde mais a agendas partidárias do que às necessidades reais de agricultores, microempresários e jovens empreendedores.

Microfinanças: proximidade cultural e territorial

Sem negar o impacto da digitalização promovida pelas telecomunicações, é necessário reconhecer que as instituições de microfinanças rurais permanecem insubstituíveis. Conceder e recuperar crédito com eficiência não é apenas uma questão de algoritmos de scoring ou de big data. Pressupõe compreender a cultura local de poupança, solidariedade e reciprocidade. Pressupõe confiança pessoal, proximidade geográfica e afinidade cultural. Elementos que ainda não estão incorporados nos mecanismos digitais de inteligência artificial que suportam muitas aplicações financeiras.

É por isso que a indústria microfinanceira tem de ser reforçada, tanto em governação como em capitalização. Esse é precisamente o trabalho que, com apoio da Gapi, vem sendo realizado através da AMOMIF (Associação Moçambicana de Operadores de Microfinanças), rede que congrega ainda poucas dezenas de operadores, mas que — se devidamente apoiada — tem potencial para se posicionar como peça-chave de um sistema financeiro inclusivo.

O risco da dependência externa

Outro alerta do Handbook for SME Financing in the SADC é claro: “sem apropriação nacional, as estratégias tornam-se meras formalidades em relatórios internacionais” ⁷.  Moçambique não pode continuar a seguir apenas agendas externas ditadas por doadores ou pelo FMI.

Moçambique precisa de consolidar instituições financeiras de desenvolvimento com boas práticas e implantação rural, capazes de mobilizar poupança local, partilhar riscos e oferecer assistência técnica ajustada às realidades das comunidades e PMEs. Só assim será possível reduzir a pobreza de forma duradoura.

Três passos urgentes

Primeiro, uma regulação proporcional, adaptada às realidades das microfinanças e cooperativas, como recomenda o estudo conduzido por Alberto Didoni.

Segundo, uma descentralização funcional, corrigindo os bloqueios e riscos de captura política apontados por Salvador Forquilha.

Terceiro, microfinanças reforçadas, capitalizadas e governadas com transparência no âmbito da estratégia proposta pela AMOMIF, de modo a transformar poupança e crédito em crescimento de PMEs e criação de empregos dignos.

Conclusão

Se queremos enfrentar o desemprego e reduzir a pobreza, não basta multiplicar contas móveis. É urgente transformar as metas da ENIF em resultados concretos: mais PMEs sustentáveis, mais empregos dignos e mais cidadania económica. Moçambique precisa de IFDs sólidas, de uma indústria microfinanceira robusta e enraizada nas comunidades e de uma governação descentralizada capaz de responder às necessidades locais. Só assim a inclusão financeira deixará de ser promessa em relatórios internacionais e passará a ser motor efetivo de desenvolvimento inclusivo.

E, acima de tudo, o sucesso da inclusão financeira também deve ser medido pela sua capacidade de gerar empregos dignos para milhões de jovens e mulheres moçambicanos.

Notas

  1. 1. Handbook on Best Policies and Practices for SME Financing in the SADC Region, SADC Support Consortium, 2025, coord. técnica: Sithembile Maunze.
  2. 2. ENIF 2025–2031, Banco de Moçambique, 2025, p. 12.
  3. 3. ENIF 2025–2031, pp. 18–20.
  4. 4. Alberto Didoni, Avaliação do Quadro Regulatório para Instituições Financeiras em Moçambique, Projeto SPEED/MPMEs Resilience Fund, cofinanciado USAID–Gapi, 2024, p. 18.
  5. 5. Handbook on Best Policies and Practices for SME Financing in the SADC Region, p. 37.
  6. 6. Salvador Forquilha, The Political Stakes of Decentralisation, Cambridge UP, 2022, p. 19.
  7. 7. Handbook on Best Policies and Practices for SME Financing in the SADC Region, p. 42.

Publicado no Savana, edição 1655.

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