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O Capital Humano da Juventude: Entre a Precariedade e a Esperança

Opinião

O Capital Humano da Juventude: Entre a Precariedade e a Esperança

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Por F. António Souto

Há mais de três décadas que defendo que o maior recurso de Moçambique não está debaixo da terra, mas sentado nas salas de aula, nos mercados informais, nos estaleiros de obras, nos centros urbanos que crescem para lá da capacidade municipal. Não são o gás, o carvão ou os megaprojectos que determinarão o futuro do país: é a qualidade humana e cívica da juventude.

Mas esta afirmação exige ser confrontada com o país real. E exige igualmente clarificar o que entendo por “capital humano” no presente contexto político, social e económico de Moçambique.

1. O que está em causa quando falamos de “capital humano”

A expressão “capital humano” tem sido usada, em certos círculos académicos, políticos e empresariais, para atribuir ao indivíduo responsabilidades que pertencem ao sistema económico.

Particularmente após as manifestações de Outubro 2024, quando milhares de jovens mostraram que a energia que possuem pode tanto construir como incendiar o país percebi a urgência de revisitar criticamente o conceito de “capital humano” e a reconhecer que, sem uma clarificação do conceito e das políticas, corre-se o risco de esconder responsabilidades estruturais, culpar o indivíduo jovem pelos fracassos do sistema e transformar desigualdades sociais em aparentes problemas de mérito individual. Conclui que:

  • o desemprego não se resolve apenas com “melhor qualificação”;
  • a meritocracia serve muitas vezes para mascarar desigualdades estruturais;
  • transformar cada pessoa numa “empresa de si própria” cria ansiedade, precariedade e isolamento.

Por isso, não uso “capital humano” no sentido empresarial de fator de produção, mas no seu sentido social e nacional: o conjunto de capacidades, ética, energia cívica e potencial criativo que o país precisa de valorizar, organizar e orientar.

Moçambique não pode importar juventude, nem a substituir por máquinas ou megaprojectos. Este é o nosso recurso vital. Mas só será capital se for cultivado — como se cultiva uma terra fértil — e não apenas esperado, como se espera por uma mina de ouro.

2. O questionamento essencial: que juventude é essa?

O sociólogo João Feijó formulou uma pergunta que muitos têm medo de fazer:

Como pode esta juventude, no actual sistema educativo, ambiente de negócios, infraestruturas e cenário regional, constituir o maior capital moçambicano?”

Este questionamento é pertinente porque:

  • O território moçambicano deixou de ser fornecedor de mão-de-obra (sobretudo jovens) para as minas da África do Sul, que foi até há poucas décadas uma das principais fontes de entrada de divisas.
  • A juventude concentra-se nas franjas periurbanas, onde as infraestruturas colapsam.
  • O emprego formal já não absorve nem 5% dos 500 mil jovens que entram no mercado de trabalho todos os anos.
  • O resto sobrevive na informalidade e, cada vez mais, em actividades ilegais sem proteção social.
  • Sentem-se excluídos, frustrados e tentados por discursos populistas que prometem ruturas rápidas.

Este diagnóstico é duro. Mas é real.
E torna ainda mais urgente a pergunta: como transformar este quadro numa força construtiva?

A juventude é o maior capital moçambicano não pelo que já é, mas pelo que pode vir a ser — se as lideranças nacionais tiverem coragem de transformar precariedade em capacidade e energia dispersa em projeto nacional.

3. O colapso silencioso das competências

Há um problema que não podemos contornar: a qualidade da educação degradou-se.

  • Muitos chegam à universidade sem raciocínio lógico básico.
  • Há jovens licenciados que não sabem interpretar um texto ou escrever um relatório.
  • O ensino técnico-profissional é insuficiente e desarticulado das necessidades reais do país.
  • A matemática elementar, que deveria ser a base de pensamento estruturado, falha logo no ensino primário.

Neste contexto, dizer aos jovens “sejam empreendedores” sem lhes dar ferramentas é cinismo.
E dizer “procurem mérito” num mercado sem portas abertas é empurrá-los para a frustração.

Por isso, repito:

A empregabilidade é mérito, não milagre — mas o mérito só existe quando o país cria condições para o trabalho digno.

4. As armadilhas que destroem o potencial da juventude

A juventude moçambicana tem energia, criatividade e ambição.
Mas enfrenta um ambiente que a desorienta:

  1. Cultura elitista que despreza quem não tem “canudo”. A educação deve aproximar e servir, não afastar e distinguir
  2. Poder político que promete rupturas mágicas como solução para problemas complexos. Não se conhecem soluções mágicas que substituam o trabalho disciplinado, o conhecimento e a ética. A violência nunca construiu prosperidade.
  3. Tribalismo, moralismo religioso e racismo subtil, usados para manipular. Isso fere a unidade nacional e mata a racionalidade. Os líderes e as instituições nacionais devem actuar de forma que a juventude seja a ponte entre as nossas diferenças, não um espelho delas.
  4. Redes sociais que recompensam impulsos, não reflexão. As redes sociais tornaram-se espaços de poder e também de engano. Muitos jovens confundem opinião com conhecimento, curtidas com mérito, emoção com verdade. A pressa de reagir substitui a vontade de pensar. No processo de desenvolvimento do capital humano é urgente estimular a juventude a saber comunicar com consciência e verificar antes de partilhar.
  5. A negação do debate aberto, é a tendência crescente de rejeitar quem pensa diferente, de gritar em vez de argumentar. Mas sem pluralismo, a democracia apodrece.
  1. Uso indevido da herança de passados heroicos como se fosse título vitalício de mérito. A história inspira, mas não legitima privilégios.
    Cada geração tem de provar a sua utilidade através do trabalho e da integridade
  2. ONGs e OSFL oportunistas que transformam “formação” num negócio de curto prazo. Fogem ao fisco, não criam competências reais nem oportunidades duradouras, deixando atrás apenas relatórios e fotografias de eventos. Criam expectativas irreais entre os jovens e consomem recursos que deviam servir para fortalecer instituições sérias e programas sustentáveis.

Estas armadilhas não são apenas comportamentos individuais — são mecanismos que corroem silenciosamente o potencial humano da nossa juventude, desviando-a da criatividade, do mérito e do serviço público.
E destroem a capacidade de a juventude ser força económica e cívica de transformação.

5. O que é preciso fazer: instituições, ética e projeto nacional

É aqui que entra a parte propositiva — aquela que aprendi pelo trabalho de décadas no sector do desenvolvimento.

Moçambique precisa de:

  • Instituições sérias, previsíveis e com ética pública;
  • Ensino básico que ensine a pensar, e não apenas a decorar;
  • Ensino técnico-profissional robusto, ligado à indústria, agricultura e serviços reais;
  • Programas de crédito e capacitação que combinem capacitação, financiamento, acompanhamento e monitoria;
  • Uma estratégia nacional para transformar informalidade em empreendedorismo produtivo;
  • Incentivos para que o mérito não seja ultrapassado pelo nhonguismo.

Isto não é teoria:
É a lição prática de quem, na concepção da Gapi há 35 anos, defendeu que não há financiamento de desenvolvimento sem desenvolvimento de competências.

6. Uma visão possível

A juventude só será o maior capital moçambicano se o país:

  • cuidar das suas competências,
  • fortalecer as suas instituições,
  • criar oportunidades verdadeiras,
  • cultivar ética pública,
  • e orientar a energia juvenil para o país real — não para ilusões de rupturas fáceis.

A alternativa é conhecida: precariedade, populismo e instabilidade.

E há um ponto crucial: os que se formam e assumem posições de responsabilidade devem saber negociar e defender os interesses nacionais.
Como escrevi noutro contexto, “a soberania económica começa na capacidade e ética de quem nos representa.”
Um técnico competente que se vende por conveniência pessoal destrói mais do que um ignorante.
A escolha é nossa.
E não é ideológica.
É histórica.

7. Conclusão

O maior erro seria desistirmos da juventude porque ainda não é o que deveria ser.

O que defendo é simples:

A juventude é o nosso maior capital porque é o único que não se esgota — e o único que pode reconstruir Moçambique.
Mas esse capital só floresce quando há instituições, ética e oportunidades reais.

É este o debate que Moçambique precisa de ter — sem medo, sem ilusões e sem slogans. Este debate sobre o capital humano não é apenas teórico. É político. Entre a ideologia do mérito individual e o realismo da precariedade, Moçambique precisa de uma via própria: instituições que transformem energia juvenil em capacidade produtiva e social.

A juventude é o maior capital moçambicano não porque o mercado o reconheça, mas porque sem ela o país não terá futuro.

  • O presente artigo da autoria do economista F. António Souto é uma actualização da sua intervenção na palestra que orientou na Universidade Técnica de Moçambique no dia 11 de Novembro de 2025

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