Repensar a Estratégia de Desenvolvimento Inclusivo de Moçambique
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Nota Introdutória
Assumir hoje o compromisso de partilhar reflexões no semanário Savana não resulta de um impulso momentâneo, mas de um percurso de vida que me coloca, quase inevitavelmente, na obrigação de contribuir para o debate público sobre os caminhos de Moçambique. Com mais de 70 anos, pertenço a um grupo etário que representa apenas cerca de 1% da população atual do país. Somos poucos os que, tendo já mais de 14 anos em 1974–1975, vivemos os Acordos de Lusaka e a proclamação da independência. Hoje esse grupo é de apenas 2,5% da população moçambicana — uma memória viva que não pode deixar de ser partilhada com as gerações mais jovens.
Ao longo de mais de cinco décadas de vida profissional, exerci diferentes profissões e funções sempre em Moçambique, mas com muitas ligações e instituições e figuras de outros países. Essa diversidade levou-me a conviver e aprender de sociedades e culturas distintas, bem como com personagens que marcaram épocas, tanto no campo político como no económico e social. Vivi momentos de entusiasmo e esperança, mas também períodos de desencanto e crítica. Aplaudi algumas opções de governação, questionei outras, e reconheço que nem sempre estive certo nas escolhas que defendi.
É a partir desta vivência — feita de erros, aprendizagens e experiências acumuladas — que surge a motivação para este exercício. O que me move é uma pergunta simples e urgente: que lições podemos colher das estratégias seguidas pelas sucessivas governações, ao longo de 50 anos de independência, que possam servir de inspiração e orientação sobretudo para os 82% da população que hoje tem menos de 35 anos?
Há ainda uma razão pessoal, de amizade e de compromisso ético. No final de Dezembro de 2024, mantive com o Prof. Dr. Bernhard Weimer uma longa conversa, em Maputo, já ele fragilizado pela doença, mas intelectualmente lúcido. Relembrámos o muito que, desde meados da década de 1980, debatemos sobre os dilemas da economia política e da governação em Moçambique. Concordámos, então, que era urgente dar continuidade a essas reflexões, através de escritos breves, capazes de estimular o surgimento de espaços para um debate mais amplo sobre os caminhos de um desenvolvimento inclusivo. Pouco depois, Bernhard deixou-nos. Este conjunto de artigos é também uma forma de honrar esse compromisso que com ele assumi.
Assim, o que aqui se propõe não é um exercício de nostalgia nem de justificação pessoal. É, sim, um esforço para transformar experiência em memória útil e memória em reflexão crítica, ao serviço de um futuro mais justo e inclusivo. Cada artigo, publicado semanalmente, abordará um tema específico ligado à economia política, à governação e ao desenvolvimento, procurando sempre olhar para a frente, mas sem perder de vista as lições do passado.
Atravessando Décadas: Testemunho de Uma Geração
Este não é um artigo de história económica de Moçambique. É antes um testemunho fundamentado, escrito a partir da experiência e observação de quem pertence à chamada geração da independência.
Em 1974/1975, as pessoas com mais de 20 anos representavam uma parcela reduzida da população e cerca de 90% eram analfabetos. Hoje, esse grupo etário tem mais de 70 anos e representa apenas cerca de 1,3% da população moçambicana.
Esse microcosmo demográfico, por vezes ignorado nas abordagens macro, foi essencial para garantir a transição e continuidade tanto da gestão pública como privada. Foi essa geração que, com pouca formação formal, mas grande sentido de missão, abraçou os desafios de construir um Estado, gerir empresas nacionalizadas e responder às urgências de uma sociedade em ruptura com o seu passado colonial.
Alguns desses jovens, abandonaram os seus projectos de carreiras promissoras ou estando ainda em fase de formação, interromperam os seus estudos ou projectos pessoais para se colocarem ao serviço das necessidades urgentes de um novo país: integrar o aparelho do Estado, substituir quadros coloniais, fundar instituições, organizar escolas, hospitais, fábricas, repartições, cooperativas e serviços. Com erros e improvisações, sim, mas também com uma notável entrega e sentido colectivo de responsabilidade.
Para os que viveram intensamente esse tempo, o que se segue poderá soar redundante. Mas num momento em que se discute que caminhos seguir, que estratégias adoptar para um desenvolvimento mais inclusivo, estas memórias e reflexões ganham nova utilidade.
Ao longo deste texto, voltarei a este tema geracional. Nomeadamente, à chamada geração 8 de Março, que correspondeu ao apelo lançado por Samora Machel em 1977 e que foi, na verdade, uma réplica da atitude dos que, dois anos antes, também tinham interrompido os seus estudos para participarem na causa da criação de um novo país. Na iniciativa geração 8 de Março, foram formados muitos jovens, em áreas como educação, saúde e agricultura. Em simultâneo e com a assistência recebida de Cuba, que foi essencial neste processo de formação de uma nova geração de técnicos, milhares de jovens com escolaridade primária receberam formação essencial para os desafios enfrentados pelo novo país que o Estado moçambicano não tinha capacidade de oferecer.
E, mais adiante, surgiu a “geração da viragem”, conceito introduzido por certos sectores dirigentes para legitimar uma mudança brusca de rumo, frequentemente associada ao surgimento de elites económicas beneficiadas pela abertura neoliberal.
O Socialismo de Emergência e o Estado Dominante (1975–1986)
A independência nacional foi celebrada como o ponto de partida de uma nova ordem, centrada na liberdade, autodeterminação e justiça social. Nesse contexto de entusiasmo revolucionário e ruptura com o passado colonial, a FRELIMO — desde logo a única organização partidária que assumiu a governação, menos de dois anos depois da independência, regista-se como Partido Marxista-Leninista — e definiu um modelo de economia centralmente planificada, inspirado em experiências socialistas e guiado por uma visão de transformação rápida e radical da sociedade.
A nacionalização dos meios de produção, incluindo a banca, seguros, a terra, instituições de ensino, o comércio, grandes unidades industriais, até as funerárias, foi entendida como condição necessária para afirmar a soberania económica e quebrar com as estruturas coloniais de dependência. Tratava-se, também, de uma resposta à evasão dos antigos quadros coloniais e à necessidade urgente de garantir o funcionamento dos serviços essenciais.
O Estado assumiu-se como agente central do desenvolvimento, criando empresas públicas para responder a todas as funções produtivas e sociais. Porém, rapidamente se colocaram dilemas de capacidade, eficiência e sustentabilidade. As empresas estatais operavam em ambientes adversos, com recursos humanos escassos, pouca experiência de gestão e estruturas burocráticas pesadas. O planeamento económico era voluntarista e nem sempre compatível com a realidade produtiva do país.
A ineficiente gestão económica e a guerra de agressão promovida pelos regimes racistas da Rodésia e depois directamente pelo regime de apartheid da África do Sul arrasaram a economia. Foi o tempo do cartão de abastecimento e das bichas desde madrugada para adquirir bens essenciais. Hoje, muitos jovens urbanos questionam: como foi possível sobreviver sem supermercados?
Nesse período interroguei-me, em silêncio, sobre o equilíbrio entre idealismo e pragmatismo. Não havia espaço para grandes dúvidas — a linha política era uma só — mas dentro de alguns como eu amadurecia a convicção de que o futuro de Moçambique dependeria menos de slogans e mais de saber construir instituições capazes, transparentes e orientadas para resultados.
Ajustamento Estrutural e Abertura ao Mercado (1987–1999)
A crise económica da década de 1980 levou o Governo a iniciar, a partir de 1987, o Programa de Reabilitação Económica (PRE), posteriormente ampliado para o PRES – Programa de Reabilitação Económica e Social. Sob orientação do FMI e do Banco Mundial, estas reformas abriram caminho para um novo modelo: o do Estado facilitador de uma economia liberalizada.
As medidas incluíram a liberalização de preços, a redução do papel directo do Estado na economia, a abertura ao investimento estrangeiro e a privatização em massa de empresas públicas. A banca, o comércio e as telecomunicações foram alguns dos sectores que conheceram profundas transformações.
A par de ganhos em estabilização macroeconómica e reanimação de alguma actividade privada, os custos sociais foram elevados: desemprego, precariedade, desigualdade crescente e desestruturação de sectores produtivos locais. E digo de alguma actividade, pois nem toda, como aconteceu com o desmantelamento da importante indústria de processamento do cajú, geradora de muitos milhares de empregos, principalmente em zonas rurais e periurbnas. Emergiram elites económicas com acesso privilegiado à informação e aos processos de privatização, enquanto vastas camadas da população foram empurradas para a informalidade.
Este foi também um período de redesenho do papel do Estado: de produtor directo para regulador e promotor. Mas nem sempre com capacidades institucionais ou recursos humanos à altura dos desafios. A transição foi feita de forma abrupta, por vezes descoordenada, e nem sempre suficientemente ancorada em diagnósticos realistas da economia nacional.
Mas, foi neste período que o poderoso regime de apartheid desapareceu da nossa sempre ameaçada vizinhança e, consequentemente, também se pôs fim à guerra fratricida entre moçambicanos que ao longo de 16 anos mataram e destruíram importantes infraestruturas sociais e económicas.
No final deste período, assistimos a caminhos diversos entre os que integraram a geração da independência. Alguns converteram-se em empresários, ou funcionários de organizações internacionais, outros optaram por se retirar da vida política activa ou seguiram carreiras técnicas em instituições de consultoria e universidades. Muitissimo poucos prosseguiram a sua militância como funcionários da máquina do partido único. Cada trajectória trouxe consigo aprendizagens e contradições.
Crescimento Económico com Mega-Projectos (2000–2015)
Com a paz assinada e os equilíbrios macroeconómicos restabelecidos, Moçambique atraiu grandes fluxos de investimento externo, sobretudo nos sectores de recursos naturais e infraestruturas. Mega-projectos como a fundição de alumínio (MOZAL), a exploração de carvão em Tete, as areias pesadas de Moma e os projectos de gás natural em Inhambane e na bacia do Rovuma posicionaram o país como destino emergente de capitais globais.
O Estado, na expectativa de um “efeito derrame” sobre o resto da economia, ofereceu isenções fiscais, regimes especiais e infraestruturas dedicadas. Apesar do dinamismo induzido em certos centros urbanos, os encadeamentos produtivos foram fracos, e o impacto sobre o emprego e a inclusão económica permaneceu limitado.
O crescimento médio do PIB mascarava fragilidades estruturais: uma base produtiva estreita, forte dependência da importação, deficiências logísticas e um sector agrícola estagnado. As desigualdades territoriais acentuaram-se, e a pobreza permaneceu resiliente.
Foi também neste período que surgiram e se consolidaram importantes cartéis económicos ligados à financeirização de activos do país, ao surgimento de redes ligadas ao narcotráfico, à destruição de florestas naturais e à exportação de madeiras preciosas e muito mais. Notavelmente, alguma elite ligada à direcção do partido FRELIMO apareceu profundamente ligada a estes negócios ilícitos. Também notavelmente, filhos de alguns desses políticos surgem como “empresários de sucesso” sem nunca terem sequer aprendido a gerir a sua própria casa ou a dispensa da sua casa. A propaganda para justificar esta nova vaga de enriquecimento foi a de designar estas gentes como “geração da viragem”.
Assassinatos de pessoas que buscavam a verdade e a transparência como Carlos Cardoso e Siba Siba Macuácua, assim como de juristas e agressões físicas a académicos como José Macuaine são as mensagens desse regime e desse período de acumulação capitalista selvagem e de poder político incontestável.
Em suma, este foi um período de grande perda de valores éticos e morais, que pessoas como eu, pertencentes à geração da independência, olham com preocupação pelos seus efeitos nas gerações futuras.
Crise de Confiança e Recomeços Difíceis (2016–2024)
A descoberta das dívidas ocultas em 2016 representou uma ruptura grave na trajectória económica e institucional do país. A perda de confiança dos doadores e mercados, a suspensão de apoios orçamentais e a degradação da imagem internacional de Moçambique tiveram impactos profundos e duradouros.
Contudo, importa reconhecer que as raízes desta crise de confiança não começaram em 2016. Já desde 2012, a liderança político-partidária com poder cada vez mais absoluto começou a sobrepor-se a todo e qualquer mecanismo de controlo democrático e público. Foi nesse contexto que se armadilharam os esquemas de endividamento oculto, à margem da Constituição, com total opacidade e ausência de escrutínio.
Embora toda a história pós-independência de Moçambique tenha conhecido episódios de má governação, este período destacou-se pela magnitude da apropriação de fundos públicos e pela sistemática erosão dos princípios democráticos. A governação passou a centrar-se na manutenção do poder a todo o custo, reprimindo a oposição e travando qualquer aprofundamento da descentralização.
A gravidade deste ambiente tornou-se bem evidente com o assassinato do jurista e académico Gilles Cistac, defensor da autonomia local e das reformas institucionais. O seu desaparecimento marcou uma linha vermelha na luta entre um poder centralizado e as aspirações de uma sociedade mais plural e participativa.
Este escândalo foi mais do que um erro de governação: representou um crime de endividamento ilegal e doloso, cometido à margem da Constituição e sem qualquer transparência. As suas consequências ultrapassam o domínio financeiro: para um país altamente dependente da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), a suspensão dessa assistência continua a ter efeitos gravíssimos no acesso à saúde, educação, investimento público e confiança externa.
Os Desafios do Presente e as Esperanças do Futuro (2025 e além)
Atravessadas estas décadas, Moçambique tem agora oportunidade de redefinir as suas prioridades com base numa leitura honesta do passado. O desafio central é combinar crescimento com inclusão, estabilidade com participação cidadã, e soberania com inserção inteligente no sistema global.
Mas o que temos para construir esse futuro? Felizmente, temos hoje um Presidente jovem, que provavelmente possui maior sensibilidade para entender as ansiedades e aspirações dos milhões de jovens moçambicanos. No entanto, quando observamos quem o rodeia — como se viu na recente fotografia dos membros do Conselho de Estado — deparamo-nos com o peso simbólico e real da gerontocracia dominante. Ainda que se diga que esse órgão tem um papel consultivo, basta olhar para a composição da elite dirigente da FRELIMO e da sua comissão política para perceber que a renovação geracional está longe de ser uma realidade.
Se a idade por si só não define a capacidade de liderança, o exemplo de quem dirige a organização da juventude do partido ilustra bem as contradições: discurso desajustado, postura desinspiradora, ausência de escuta ativa. Tudo isso revela que os desafios da renovação política e ética permanecem em aberto.
Apesar disso, não devemos adoptar um posicionamento cínico ou derrotista — e de facto não o temos. Ao contrário, acreditamos que é possível construir novos caminhos, desde que haja escuta, debate informado e coragem de romper com práticas gastas.
É por isso que, nos próximos artigos, iremos revisitar com espírito crítico e construtivo alguns documentos que orientam a actual fase da governação: as políticas públicas de juventude e emprego, a Estratégia Nacional de Desenvolvimento (ENDE), a Estratégia Nacional de Inclusão Financeira (ENIF), a Estratégia de Industrialização (PRONAI), a política externa e de cooperação, bem como as reformas indispensáveis no domínio da governação — tema que o saudoso Bernhard Weimer nos convidou insistentemente a aprofundar.
Publicado no Savana, edição 1623.
