Moçambique numa encruzilhada: Que Caminhos Seguir?
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Uma reflexão do MozFinDev Talks com o Prof. Lourenço do Rosário onde se abordam temas candentes para o futuro de Moçambique.
O Prof. Dr. Lourenço Joaquim do Rosário foi o convidado do MozFinDevTalk de Setembro de 2024. Este talk realizou-se num ambiente marcado pela campanha eleitoral para as eleições gerais e presidenciais previstas para 9 de Outubro de 2024. Para António Souto, editor da plataforma F4SD e organizadora dos MozFinDevTalks, o perfil do seu convidado é o ideal para um talk quando Moçambique se prepara para um novo ciclo de governação. Para o anfitrião o perfil do convidado desdobra-se em múltiplas vertentes, com destaque para o académico-escritor de pensamento independente comprometido com o projecto de construção da Nação moçambicana, e também o político insubmisso que reflecte sobre a África que queremos e sobre o futuro da Governação bem como o empreendedor social que até aos 11 anos andou descalço.
Para os propósitos da plataforma F4SD dialogar e auscultar Lourenço do Rosário com o seu pensamento crítico e independente é cumprir a nossa missão. Quando este cidadão inspirado pelas tradições do Vale do Zambeze nos diz que “Moçambique precisa de uma governação que faça contas” e aborda a fragilização das instituições nacionais que impedem uma descentralização administrativa e financeira ou, como ele afirma “a devolução do poder ao povo”, sentimos o vibrar da “voz insubmissa de uma nação em construção” que não podemos deixar de partilhar com os nossos amigos e leitores.
Um filho do Vale do Zambeze com três facetas: o académico-escritor, o político e o empreendedor social
AS: Hoje temos mais um MozFinDevTalk, um talk que, como têm sido os outros, é enquadrado na plataforma Finance for Sustainable Development, (Finanças para o Desenvolvimento Sustentável). Este talk é particularmente importante para mim, pessoalmente, por causa da relação pessoal que há muito tempo tenho com o professor, o doutor Lourenço do Rosário. Convidámos o professor Lourenço do Rosário por muitas razões, mas não vou citar todas. Quero apenas resumir que o professor Lourenço do Rosário nasceu em 1949, em Marromeu, depois passou pelo Malawi, ainda criança, depois fez os estudos no Luabo. Portanto nas províncias de Sofala e Zambézia, estão as raízes do nosso muito bem conhecido professor, o doutor Lourenço do Rosário. A sua biografia é extensa.
A carreira profissional do Professor Doutor Lourenço do Rosário inclui-se a do fundador da primeira instituição de ensino superior privada em Moçambique, mas começou a sua vida profissional aos 24 anos lecionando na Escola Preparatória do Noroeste, em Lourenço Marques. Na sua carreira como docente viveu os desafios e sonhos dos primeiros anos da independência, passando por ser o gestor da maior escola secundária do país, aquela que era o Liceu Salazar de Lourenço Marques e que passou a ser a Escola Secundária Josina Machel de Maputo. Como bacharel passou pela UEM e de seguida dirigiu o Centro 8 de Março até 1982. Obteve uma bolsa da Gulbenkian para estudar em Portugal. Em 1987 doutorou-se em Literaturas Africanas pela Universidade de Coimbra. Viveu os anos seguintes repartindo-se entre várias instituições de ensino superior de renome internacional e a UEM, por convite do ex-Reitor, Dr Rui Baltazar. Em 1984 fixa-se definitivamente em Moçambique onde se lança no projecto de criação do Instituto Superior Politécnico Universitário formalmente constituído em 1995 e, posteriormente, em 2007, convertido em Universidade A Politécnica, que dirigiu como Reitor durante vários anos.
Após esta introdução, eu creio que o professor Lourenço do Rosário vai me corrigir ou acrescentar alguns elementos importantes que me escaparam para não tomar muito mais tempo. Professor, muito obrigado por ter aceite este convite e não sei se quer acrescentar mais algumas notas à sua extensa vida profissional.
LR: Muito obrigado, Souto. Como disse na introdução, nos conhecemos ainda na nossa primeira fase de adultos, tinhamos vinte e tal anos, portanto, lá vão quase cinquenta anos ou mais, e isto cimenta, naturalmente, algumas cumplicidades. Esta hesitação entre Marromeu e Luabo faz de mim um filho do Vale do Zambese. E o Vale do Zambese tem histórias sociais, coletivas, muito interessantes do ponto de vista da história de Moçambique, e penso que isto também moldou pessoas. Ali surgiram relações entre pessoas de África, Portugal e Goa. Quero dizer, o Vale do Zambese é um dos primeiros territórios que constitui aquilo que se chama o Império Português do Oriente.
LR: Isto é importante para o desenvolvimento do pensamento das pessoas, porque nós somos um país multifacetado, multietnico, multilinguístico, mas temos uma coisa muito importante, quer dizer, temos o sentimento de que pertencemos a este país chamado Moçambique, que é diverso, mas sente a unidade nacional.
AS: Portanto, estamos hoje a dialogar com um cidadão, que tem este sentimento nacional enraizado no Vale de Zambeze. O professor Dr. Lourenço Rosário, tem uma vida e uma experiência multifacetada entre académico-escritor e, como acabou de demonstrar, preocupado com o projeto da Unidade Nacional. Isto está revelado em muitos escritos. Não gosta de ser tratado como político, mas é reconhecido como um político independente e, por vezes, irreverente. E também o empreendedor social. Portanto, vejo em si, entre outras, estas três principais facetas: o académico-escritor, o político e o empreendedor social.
No projecto de construção da Nação, quem detém o poder desrespeita a opinião pública e os intelectuais
AS: Se me permite começar pela vertente de académico-escritor, e refiro-me em particular aos livros “A Literatura Moçambicana, Tradição e Modernidade”, bem como a “Cultura e Identidade nacional”. Sei que está para publicar um quarto volume dos seus escritos Singularidades. Quem lê estas obras, vê claramente que há uma linha de preocupação comum no seu pensamento, que é o projeto da nação moçambicana, como algo que está em construção. Acha que os vários campos da literatura têm contribuído para esse projeto? E como a arte e a literatura estão muito profundamente abordados nesses escritos, acha que poderia haver trabalho com mais impacto neste projeto da nação?
LR: Muito obrigado. Ultimamente tem aparecido algumas críticas aos intelectuais. Ainda há dias apareceu um texto longo de João Bernardo Honwana, que do meu ponto de vista é um pouco injusto para os intelectuais moçambicanos, mas sobretudo às pessoas da área da literatura, porque nós temos um país que está a atravessar grandes turbulências de assimetrias sociais, políticas e econômicas. E há sempre alguém que diz que o que falta em Moçambique é a voz dos intelectuais e dos escritores etc. Que o silêncio dos intelectuais é ensurdecedor. Não é verdade. Não é verdade porque desde o tempo colonial que a literatura tem contribuído grandemente para produzir, profetizar determinadas saídas da nossa sociedade. O problema é que a maior parte daqueles que detêm o poder assobiam para o lado.
Não têm, digamos assim, o cuidado de respeitar a opinião pública e a opinião dos intelectuais como sendo os melhores conselheiros para corrigir as assimetrias. Portanto não há silêncio. Nós temos ao longo deste tempo todo, desde o tempo colonial, poetas, desculpe-me de citar, Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar etc., passando pela “Geração da Charrua”. há de facto, quer na literatura, quer no pensamento intelectual, quer na filosofia, temos filósofos moçambicanos que falam, que apresentam as suas opiniões. Portanto, não há silêncio. O que existe é o desencontro entre aqueles que pensam e aconselham – o setor intelectual tem os melhores conselheiros – que provavelmente ou são rejeitados, ou não querem saber deles …. Portanto, há um desrespeito pela opinião dos intelectuais.
Estamos no “estágio do cabrito”: o retorno ao conflito, corrupção, paralisia das instituições, intolerância, falta de democracia
AS: Naquilo que tem escrito, e dito publicamente, o professor tem-se referido várias vezes ao papel das instituições, apelando para a necessidade de termos instituições fortes, credíveis e funcionais como elementos instrumentais da estabilidade e boa governação de uma sociedade. (…) E ainda sobre o processo da identidade nacional citou personagens como Eduardo Mondlane, Marcelino, Samora e alguns importantes intelectuais que abraçaram e viveram o processo de construção da Nação. Mas, recentemente, advertiu-nos que, todos os dias, chegam-nos narrativas que indicam sinais que nos podem conduzir a um estado de caos. Todos os setores orgânicos do Estado demonstram evidentes mazelas. Nos setores da infraestrutura, da justiça, da educação, da saúde, nos órgãos de soberania do Estado, há claros sinais que nos evidenciam o estado de caos. E também no empresariado e nas organizações não governamentais. O que de facto o preocupa com estes sinais de caos, e a que se refere? Escreveu isso não há muito tempo, hoje, aqui, voltaria a dizer isso, manifestando esta preocupação?
LJR: Estamos num período interessante, não é? Estamos num calendário eleitoral. E o que me preocupa a mim, neste momento, porque tive o cuidado de ler com alguma atenção os manifestos eleitorais dos principais atores políticos, quer pretendentes partidários a entrar no nosso parlamento, quer para as estruturas descentralizadas, nomeadamente as estruturas das províncias, governadores provinciais e assembleias provinciais, quer os candidatos presidenciais mais relevantes – são quatro – e vejo-os com alguma mágoa e alguma pena.
Fui um dos cidadãos que, desde os anos 93 mais propriamente, trabalhámos numa agenda – a agenda 2025 – onde se faz o diagnóstico de uma visão para a nação, e que nós refletimos de uma forma muito independente, muito calma, envolvendo especialistas das várias áreas, e que alguns governos que foram passando desde os anos 90, referem que os seus manifestos são baseados nessa agenda 2025.
Mais recentemente, por força da determinação da criação da União Africana em 2003, no âmbito do Desenvolvimento da África e Democracia, era esse o foco da transformação da Organização da Unidade Africana para a União Africana, criou-se o MARP (Mecanismo Africano de Revisão de Pares), que é um mecanismo de avaliação. Moçambique autoavaliou-se e apresentou a sua autoavaliação por duas vezes, em 2009 e 2015, na Líbia, em 2009 e 2015, na cidade de Joanesburgo, onde se fez o diagnóstico da boa e má governação dos vários setores da democracia. Portanto, no fundo, capítulos que a agenda 2025 propunha para que nós pudéssemos atingir em 25 anos o “estágio da abelha”, que é o de uma boa governação.
E o MARP faz o diagnóstico daquilo que foi cumprido e não foi cumprido. Chegado a este momento, nós estamos no “estágio do cabrito”, que é o que nós estamos vivendo: o retorno ao conflito, corrupção, paralisia das instituições, intolerância, falta de democracia etc. Portanto, isso está lá, escrito por moçambicanos. Isso não foi nem a União Europeia, nem os Estados Unidos, nem o PNUD, nenhuma organização internacional. Foram intelectuais e profissionais moçambicanos, quer aqueles que fizeram a agenda 2025, quer os que fizeram a avaliação através do Mecanismo Africano de Revisão de Pares.
E os nossos governos foram ao exame na União Africana. De 2009 a 2015, houve mudança de governo. Foram ao exame de pares, onde apresentaram os seus relatórios e os pares apresentaram aquilo que se chama Plano de Progresso e Correção. Nós fizemos, igualmente, dois relatórios de progresso para cada uma dessas avaliações. Estas informações estão escritas, foram publicadas e foram financiadas, inclusivamente, pelo governo.
Com muita pena eu vejo que nenhum partido político aproveitou estas informações para, nos seus manifestos políticos fazerem uma autoavaliação, dizendo o que está mal agora, o que é que nós vamos corrigir. Mas o que é que nós estamos a verificar na campanha eleitoral? Promete-se pôr fábricas, promete-se pôr água, fazer estradas, o que durante dez anos não foi feito.
AS: Promete-se criar bancos de desenvolvimento como se fossem varinhas mágicas.
LR: Então, é o mesmo de sempre que dá cabo das nossas instituições. Para mim, que tenho idade suficiente, não me parece, que a gente se possa sentir tranquila, quando os nossos atores políticos não querem saber daquilo que se está a fazer de uma forma séria do ponto de vista da opinião pública.
As nossas instituições precisam de ter um processo de cura
AS – Este é um ponto muito sensível. Quando falamos da fragilização de instituições, da descredibilização das instituições e, como citou, isso começa com partidos que ignoram aquilo que foi o pensamento, muito consensualizado, o pensamento e a estratégia que estão na Agenda 2025. Mas ainda bem que se referiu ao MARP. O professor é reconhecido internacionalmente, pelo seu papel como líder do MARP e agora partilhou mais alguns elementos importantes. O professor tem se referido ao MARP também como uma escola para os políticos. Qual é de facto o valor dessa escola? De certa maneira já adiantou, mas será que os políticos moçambicanos têm aprendido algo dessa escola? Parece que não. Por quê?
LR: Formalmente, empenham-se, quer dizer, nos termos em que o governo se comprometeu com a União Africana de ir apresentar a avaliação da sua governação, nesses quatro capítulos, que é a governação democrática, a governação empresarial, a governação económica e social e desenvolvimento. São quatro capítulos. Naturalmente, quando o Chefe de Estado vai apresentar este relatório, ele está a comprometer o seu próprio governo, dizendo: nós fizemos bem isto, mas não fizemos bem aquilo. Sem dúvida que é uma escola, porque há debates muito interessantes que nos ajudam também a ver como é que os outros têm estado a fazer sobre estas questões. Essas questões não são levantadas como opinião; são levantadas como pesquisa. Faz-se trabalho de campo. Fazem-se inquéritos. Há elementos sobre infraestruturas, sobre educação, sobre comercialização, produção agrícola, produção agrícola familiar, industrial etc. Só que, quando vemos os manifestos, ou depois, quando ganham, e apreciamos os seus planos, económicos e sociais, absolutamente nada daquilo que foi apresentado aparece.
Eu acho que as nossas instituições precisam de ter um processo de cura. Temos o exemplo do ANC, Está a curar-se neste momento.
AS: Mas, para isso, como dizia Samora. Machel, de vez em quando é preciso fazer um bocado de sangue.
LR: Exatamente. É preciso um processo de cura.
Estamos num país onde não se fazem contas porque achamos que somos ricos
AS: Já estamos a discutir aquela sua vertente do político independente, do político que investiga, que estuda e debate e o MARP tem sido um fórum importante para isso. O professor tem revelado um desapontamento e preocupação sobre a forma como o país tem sido governado. Houve pessoas da nossa elite que não gostaram quando o professor há tempos afirmou que Moçambique não faz contas. ( …) Então, um país que não faz contas significa um país que não tem a dimensão das suas próprias insuficiências (…). Quando um país como Moçambique se lança a fazer empréstimos sobrevalorizados, (e deu o exemplo que é bem conhecido, e comentado pelos nossos engenheiros e outros intelectuais que chamaram a atenção sobre isso) como foi o caso do projeto da Katembe, que começou por ser cerca de 350 milhões de dólares, mas que acabámos gastando ali cerca de 800 milhões. Isto, nas suas palavras, significa que não se faz contas, ou alguém vai pagar isto. E quem vai pagar? Professor, hoje voltaria a dizer isto?
LR: Absolutamente. Eu gostava aqui de sublinhar que sou cidadão deste país, naturalmente que tenho as minhas opções partidárias, voto, é o meu direito. As pessoas sabem qual é a minha opção partidária. Mas há quem ache que fazendo uma crítica significa que sou da oposição ou não oposição.
AS: Isso é o que você referiu como perda do espírito da tolerância.
LR: Exatamente. Então, o importante quando falo sobre as contas, é que se houvesse neste país uma governação que se preocupasse com as nossas próprias dimensões, mas não há. Então, o que é que se passa neste momento em Moçambique?
Primeiro: Não se fazem contas porque nós achamos que somos ricos. Nós não somos ricos, somos potencialmente ricos. Há um dito (acho que é de todas as culturas Bantu) que não se pode começar a dividir a galinha antes de pegá-la e assá-la. Eu quero a perna, eu quero a asa, eu quero não sei quanto, quando de facto a galinha ainda não foi pega, porque você não vai ter aquele pedaço porque a galinha pode fugir.
Dois. Começo a ver nos nossos candidatos a presidente um discurso titubeante, de que nós vamos renegociar os contratos com as multinacionais. Mas qual é a estratégia? Uma coisa é dizer. Isso pode cair bem para todos nós, porque é uma das grandes críticas. A gente não faz contas, porque damos isenções a essas grandes multinacionais, portanto, não entra para a autoridade tributária o valor acrescentado que as mais-valias estão a dar às multinacionais. Quem paga são só as pequenas e médias empresas a quem os fiscais estão sempre lá a ver as contas, a multar etc. E por isso o orçamento do Estado não chega …E depois há a fuga fiscal, há corrupção do dinheiro público, há maus investimentos nas infraestruturas do Estado, nas estradas, nas escolas, nos hospitais, na formação etc. Por isso o país não pode andar. Então, eu voltava a dizer exatamente a mesma coisa.
Não há em Moçambique nenhum movimento que nos coloque como parceiros de discussão das questões sobre estratégias de desenvolvimento
AS: Já esperava isso. Falámos de estratégias e agradeço-lhe por ter feito uma referência à Agenda 2025 e, por isso, retomo à questão das estratégias. Estamos neste momento a assistir as várias organizações internacionais a apresentar estratégias para um desenvolvimento mais sustentável e fomos informados que o governo acabou de aprovar (não sei que debates é que houve sobre isso) mas fomos informados que foi aprovada a ENDE (Estratégia Nacional de Desenvolvimento Económico). Com a sua franqueza para falar abertamente sobre a nossa situação interna, creio que é importante também olharmos para os sistemas e parceiros internacionais. Estamos numa corrida contra o tempo para a realização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 2030 das Nações Unidas. Dentro de duas semanas há a “Cimeira do Futuro”, em Nova Iorque. Daqui a menos de um ano há a quarta Cimeira Internacional de Finanças para o Desenvolvimento. Há já um amplo debate na preparação destes eventos. Nesses debates discute-se a relação entre as instituições financeiras multilaterais, bem como algumas bilaterais de alguns doadores, com os nossos governos, não só Moçambique, que, por vezes, são aquilo que acabou de dizer. Têm essas deficiências que acabou de dizer. E aí resulta o quê? Resulta uma dificuldade de relacionamento saudável entre os governos e instituições nacionais, e as instituições multilaterais. Nestes debates discute-se a alteração da arquitetura financeira internacional, mas também a necessidade de uma melhor cidadania, conferindo aos cidadãos de cada país, maior acesso ao relacionamento e ao endividamento com as instituições financeiras internacionais. Portanto, há estes debates em curso sobre governação e estratégias de desenvolvimento e que não são apenas do lado interno, mas também do lado das agências multilaterais. Da sua experiência, particularmente no MARP, nos debates internacionais, acha que vamos evoluir para um cenário de mais coerência de políticas?
LR: Começando exatamente com as agendas, a Agenda 2030, que é sobre o desenvolvimento sustentável. Mas a África, a União Africana, definiu já a meta 2068. Ao mesmo tempo, há um pensamento do Muammar Gaddafi, que estão a tentar apagar (acho que foi um dos fatores que levou ao seu assassinato) que era colocar a África num plano relevante da geopolítica. Não importa os métodos dele, mas sim o seu pensamento. E nós estamos a viver dois tipos de discursos neste momento em África. Temos um discurso pós-colonial, sobretudo na África Ocidental. Revisão dos parâmetros com que os países saíram da colonização e do colonialismo para novos paradigmas de relacionamento com as antigas potências coloniais, que são ocidentais. Então está a surgir um novo discurso panafricano. E é interessante que aqui não se ouve falar disso. Nós temos pouco debate político sobre isso aqui. As nossas televisões, as nossas rádios não são capazes de estar atentas ao que se passa aqui em África. Estão mais preocupados com Israel, com a Ucrânia, com Venezuela etc., o que a comunicação internacional nos vende. Há mudanças de regime na África Ocidental por duas vias. Temos os países que mudaram o regime por via de golpes de Estado Militar, como o caso do Mali, do Niger e do Burkina Faso. Mas outros que mudaram por via do voto, nomeadamente o Senegal. E que começam a trazer um novo discurso de relacionamento aproveitando a vaga já global que há entre o Sul Global e o Ocidente.
Não vejo aqui em Moçambique nenhum movimento que nos coloque como parceiros de discussão destas questões. Nós somos demasiado aldeões. E quando é assim, acabamos por apanhar “fatos prontos a vestir”. E quando os fatos são “prontos a vestir”, nem sempre se ajustam aos nossos corpos… os fatos prontos a vestir são feitos à medida de padrões que não são necessariamente os nossos. Então, para nós podermos participar desse debate internacional, temos de saber o que é que se está a passar.
Quando alguns dos países africanos estão a romper com o sistema com um novo discurso panafricano e numa posição pós-colonial e pondo em causa as próprias instituições continentais e regionais, nomeadamente a CDEAO, a União Africana etc., quer dizer, em vez deles serem expulsos, que é o que está nos estatutos dessas organizações, eles dizem, não, vocês não nos expulsam, nós saímos.
Quando começa a haver este movimento, é claro que pode haver percalços, mas é preciso parar e pensar. É preciso parar e pensar, porque, de facto, tudo isso que disse, muitas vezes são contraofensivas, refluxos: “atenção, estamos a perder a África”. Então, decidem: “vamos fazer isto e aquilo”. E nós não estamos preparados para estar atentos. Apenas vamos aos fóruns. Por que razão tem que haver fóruns África-China, África-França, África-Estados Unidos? Por que não de uma forma mais igualitária? Não se pensa nisso. Vão todos os chefes de Estado sentar-se com um Chefe de Estado. Isto é uma forma de dependência que, pessoalmente, não me agrada.
Num momento, logo a seguir à independência, havia os PALOPs [Países Africanos de Língua Oficial Potuguesa]. Era um fórum importante porque nós pensávamos entre nós, sobre os nossos problemas. Os PALOPs tiveram papéis importantes, quer para a independência da Angola, quer para os problemas do golpe de Estado na Guiné. Mas, depois, quando se começou a discutir a constituição da CPLP, nós não estávamos preparados. Portugal criou um fórum. Eu estive em algumas reuniões nesse fórum chamado. “Cinco mais um”. “Cinco mais um” eram os cinco países africanos, mais Portugal. Era um fórum que, no fundo, estava a tentar reviver o mito do império. porque, quem estava a dar, digamos assim, um input e induzia a criação da CPLP era o Brasil através do grande embaixador Aparecido de Oliveira. E aí, Portugal despertou, porque havendo um fórum mais alargado em que Portugal entraria, e o Brasil também entraria, Portugal ia perder influência no seu império, recentemente perdido, do ponto de vista administrativo. As outras potências coloniais preveniram-se. Por isso é que a França é muito criticada em África pelos mecanismos que ela criou para se prevenir quando perdesse as suas colónias: a moeda, a gestão financeira, os concursos de acesso aos recursos naturais, etc.. Significa que a França retirou-se, mas não se retirou. Portugal, como veio de uma guerra de libertação, não se preveniu. Não se tendo prevenido, estava a criar à posteriori uma situação destas. Neste momento, Portugal é um país irrelevante na Europa como o é na CPLP, porque o Brasil, Angola, Guiné Equatorial, Moçambique e Timor-Leste, do ponto de vista de riqueza energética no mundo, representam muito, portanto, com muito mais relevância do que o pequeno país que é Portugal. Mas, Portugal para nós é importante, porque nos representa no fórum ocidental. Portanto, nós não podemos, de forma nenhuma, estar distraídos para esse tipo de conjuntura estratégica mundial. Qual é a posição nossa nesta disputa entre o Sul Global, os BRICS, em que estão gigantes como a China, a Índia, o Brasil, e a Rússia também (quando se livrar dos problemas que tem). Face a esta pressão que o Ocidente faz, como é que nós nos colocamos aqui? Não há esse debate, não existe. Nunca ninguém foi chamado, não estou a falar nas televisões. No tempo do presidente Guebuza, no início, no primeiro mandato, depois esqueceu-se, ele fazia debates na presidência.
Fazia debates, não sei se ele depois aproveitava ou não, mas pelo menos chamava-nos para nos ouvir. Inclusive, o mote era: se você tivesse que aconselhar o presidente, o que lhe diria? E a gente dizia na cara. Mas depois houve algumas intrigas palacianas e aquilo morreu, não aconteceu mais. Então, esse tipo de questões, por exemplo, os conselhos de ministros alargados que ele fazia. Chamava as pessoas, chamava os seus ministros e eles ouviam. Mas o debate e o diálogo acabaram neste país. A partir daí, sobre todos estes problemas, se você perguntar aos nossos governantes, se calhar não sabem o que está a acontecer. Você está mais informado do que alguns dos nossos ministros.
AS: É interessante o que você recordou agora, e ainda bem que fala destes debates na presidência. Também o presidente Chissano, quando eu era dirigente na Associação dos Economistas e ele veio ter conosco para discutimos, em vários momentos, por exemplo, os Objectivos do Milénio. Havia esse ambiente de alguma discussão. Tive a oportunidade de discutir com o presidente Guebuza, e de maneira frontal discordar sobre o uso dos chamado “sete bis”, porque considerei que era uma forma de pegarem dinheiro público, distribuir de forma pouco efetiva, pouco eficiente, mas gastando dinheiro do orçamento. Quem gere instituições financeiras sabe que isso cria o tal risco moral, “moral hazard”. Discutimos isso, e ele ouviu. Continuaram a gastar durante algum tempo, mas, mais à frente pararam porque foram prejuízos muito grandes. Mas, uma vez mais, nesta campanha política atual, há promessas para se criar bancos de desenvolvimento, assim como recriar os “sete bis”. Nós entendemos que a preocupação é com a necessidade de descentralizar a administração e gestão de recursos. Esse foi o debate que tivemos nesse primeiro mandato do presidente Guebuza, a importância da descentralização com alocação eficiente de recursos para fortalecer a participação social. Volto por isso à sua referência da Agenda 2025.
Há barreiras da desconfiança e de interesses políticos que impedem descentralizar o centralismo e devolver o poder ao povo
AS: Na Agenda 2025, um tópico importante que está lá é o reforço da descentralização num país diverso, geograficamente e culturalmente. O desafio da descentralização tem aparecido em intervenções de alguns intelectuais,como uma questão essencial para implementar o projecto da construção da nação e reforçar a capacidade de alocação eficiente de recursos. Por que é que isso não tem acontecido? Esta é uma das dúvidas nesta relação das nossas instituições com as instituições multilaterais, é que os recursos das multilaterais, ao fim e ao cabo, dificilmente chegam de forma eficiente aos destinatários para resolver o problema da pobreza, do empoderamento da mulher etc. Tudo isso nos workshops se fala. Mas, de algumas intervenções suas percebe-se que devido às dificuldades desta descentralização, esse desenvolvimento verdadeiro do país, dificilmente vai acontecer. Por que é que não há uma descentralização efetiva?
LR: Isto tem raízes históricas. Moçambique acede à independência pela via militar. Naturalmente que a estrutura mental dos dirigentes que estavam à frente do processo da independência de Moçambique é uma estrutura militar centralizada, aliás, os nossos primeiros onze anos de independência eram do centralismo democrático. Portanto, há o enraizamento da desconfiança em repartir o poder na prestação de serviços. Quando a comunidade pede escola, pede estrada, quer serviços junto de si, e que seja também ator nas decisões sobre os serviços que lhe prestam. Mas esta mentalidade de centralismo não se perde em 40, 50 anos, porque estão vivos os atores principais, os protagonistas e estão vivos os seus rebentos ideológicos…. Então, vamos pegar num caso. Afonso Dlakama forçou a discussão de descentralização das províncias. Que ele e Filipe Nyussi acabaram por acordar as eleições provinciais e distritais. Mas houve, digamos assim, um reverso. Ok, vamos eleger os governadores provinciais, as assembleias provinciais, mas vamos pôr lá o secretário de estado com mais poderes que o governador, e o secretário de estado reporta ao presidente da República. Acabou a descentralização! Este é um dos aspetos.
O outro aspecto é a dificuldade da descentralização financeira para as comunidades. Tenho tido este privilégio, como cidadão, de ser chamado a discutir em fóruns. Faço parte de um fórum chamado CREMOD que está a discutir a problemática da descentralização com muita seriedade. E um dos aspectos que a gente constatou é que o administrador de distrito está completamente como uma barata tonta nas províncias, porque ele não sabe a quem deve obedecer. Ele é nomeado pelo governo central, portanto, ele representa o governo central, mas está numa província em que existe o governador provincial. Ora, se os administradores distritais de toda uma província, virassem as costas ao governador eleito, o governador ficava sem população, nem território. Por isso é que era perverso termos avançado com as eleições distritais, porque isso iria provocar uma situação, no mínimo, perplexa, por que o governador provincial era para fazer o quê? Se os administradores estavam eleitos, são donos do distrito e donos da população desse mesmo distrito.
Mais, essa complexidade passa para os municípios, que não têm territórios devidamente definidos. Por que é que isto está a acontecer? Porque o retalhamento do território nacional está a responder aos interesses políticos, e não aos interesses dos serviços que as comunidades querem. Uma comunidade quer uma escola secundária, quer um hospital, mas em vez de se pôr esses serviços utilizando de uma forma orgânica a nossa divisão administrativa, coloca-se um município, coloca-se um distrito. Depois, o que é que acontece? O município ou o distrito precisa de presidente, precisa de escolta, precisa de palácio, precisa de não sei quanto, e os serviços ficam a perder. Este é que é o grande problema da descentralização.
Se não houver uma revolução mental, em que, efetivamente, as pessoas achem que o país não se vai dividir só porque existe a descentralização territorial e financeira, esta confusão vai continuar. E esta confusão vai continuar porque, mesmo agora na campanha, fala-se de descentralização, mas as pessoas não sabem o que é isso de descentralização. Existe o secretário de Estado nas províncias, mas se formos para as eleições distritais, vai existir o representante do Estado no distrito, porque o administrador já não é uma figura central, mas eleita. Então, isto é que é o grande medo da divisão. É interessante que, ainda na Assembleia Popular tinha sido discutido e aprovado o princípio dos distritos municipais. E a lei foi aprovada em Assembleia, mas depois considerada anticonstitucional.
Então, alguma coisa aqui, em termos de interesses políticos, está a impedir esta preocupação que nós temos que devolvam o poder ao povo. E o povo vai saber exercê-lo. Porque o povo quer serviços, (….) Eu tive uma oportunidade, nesta coisa de descentralização, quando estávamos a fazer um inquérito no âmbito do MARP e, numa comunidade, uma aldeia lá, numa das localidades de Mopeia, juntou-se a população com os seus líderes comunitários. E estavam sentados dois que, nitidamente, eram os líderes da comunidade, isso via-se pelas suas intervenções, pela forma como a população lidava com eles etc. E um deles disse assim: “chefe, eu tenho uma preocupação, que o meu povo aqui está preocupado. Mas este meu amigo aqui, que está ao lado, que é meu inimigo, também tem a mesma preocupação.” Eu perguntei: mas são inimigos por quê? E o líder respondeu: “é que eu sou da Frelimo, ele é da Renamo”. Portanto, o que ele estava a dizer era adversário político. Mas os dois tinham a mesma preocupação, uma preocupação simples. Por que é que o açúcar de Marromeu custa 16 meticais o quilo, e do Malawi custa 6? Menos da metade. Problema de comercialização, de contrabando etc. e de custos de produção. No fundo, aqueles dois homens estavam preocupados com questões de microeconomia e de gestão dos serviços do Estado, que não se preocupam com estas questões. Depois, são capazes de prender o contrabandista que traz o açúcar a 6 meticais e não sabem quais são os fatores que permitem que este açúcar chegue mais barato ao país do que aquele que está a ser fabricado no país. É por isso que falo: esta governação não faz contas, só querem medidas administrativas. Assim como o milho de Milange, de Gurué, de Lioma, etc, é vendido em bicicletas. Os malavianos põem armazéns do outro lado da fronteira na província da Zambézia, compram cá e armazenam lá. E depois, quando há falta, quando há insegurança alimentar, eles vendem-nos a nós de novo esse milho. O Souto sabe disso. Então, é sobre todas estas assimetrias que não pensamos.
AS: É interessante, e é o exemplo que deu da questão da importância da comercialização. Para valorizar a produção e pôr a produção dos camponeses, dos pequenos agricultores, no mercado, valorizando-as. E nesse exemplo da comercialização, posso referir que a Gapi criou, juntamente com uma instituição do Estado, a Linha de Crédito à Comercialização Agrícola, LCCA, que começou a funcionar muito bem com recursos do Estado e da Gapi. Começou a ter um impacto interessante na potenciação das redes comerciais rurais que são indispensáveis para a valorização do produto dos camponeses. Organizar os mercados agrícolas rurais. Agora acontece o quê? A componente do Estado está retirando fundos daí para outras coisas. Há uma fragilização deste instrumento financeiro que se revelou extremamente útil e prático. Está sendo fragilizado por causa desta absorção dos recursos públicos pela máquina administrativa do Estado ineficiente. Portanto, é um exemplo que também temos na nossa vida.
Estamos a viver uma grande distorção de valores que faz das pessoas insaciáveis por bens materiais para a ostentação e vulneráveis à corrupção
AS:Já abordei consigo a sua vertente académica, a sua vertente de político, mas há uma coisa que também não posso deixar escapar, e que é a sua vertente de empreendedor. O Professor é também reconhecido por ter sido pioneiro em criar uma universidade privada em Moçambique. Foi um ato pioneiro. É também reconhecido por ter sido um dos investidores privados pioneiros na Gapi. Mas não se lhe conhecem grandes riquezas. É visto como um empreendedor social. O que é que o move a fazer isto?
LR: Primeiro, pelas minhas origens. Eu cresci num ambiente em que as pessoas não perseguiam grandes fortunas, perseguiam essencialmente o conforto. Depois, a minha mãe, isso é importante, tinha cinco filhos, os meus pais separaram-se, e a minha mãe conseguiu, através das suas próprias atividades, formar os filhos e guardar algum valor para poder constituir, o conforto financeiro para não ser considerada pobre. Nunca entrámos em insegurança alimentar. Esta capacidade de resiliência perante as adversidades e, ao mesmo tempo, tentar encontrar um passo em frente fazia com que o conceito de distribuição que nos foi incutido pela minha mãe, e depois pelo meu pai quando regressou, na grande família, não deixar nenhum membro caído quando nós podemos pegar. Morre um irmão, pega-se nos filhos. Este conceito não é só nosso, é das sociedades tradicionais de proteção. Então, eu penso que num país tão difícil como este, quem quer ganhar dinheiro não investe na educação, porque a educação tem como clientes as famílias e, em qualquer cataclismo social, político etc. como as dívidas ocultas, a pandemia… é complicado pensar que se pode ganhar fortunas, ou ser-se rico investindo neste setor. E o Estado sabe disto. É interessante que o candidato da Frelimo diz que a educação é um investimento, não é despesa. Se é um investimento, significa que é um investimento social. Para isso, é preciso depois pensar na distribuição. Então, eu não distribuo, mas permito que a minha atividade faça uma auto redistribuição. Quando um pai me aparece e diz por causa das dívidas ocultas, a minha empresa fechou; por causa da pandemia, nós fomos despedidos; por causa da casa que eu tinha alugada, não sei onde, o inquilino foi embora e o filho está quase a terminar a sua licenciatura, o que é que eu faço?
Então, essas mais-valias que poderiam eventualmente criar uma base financeira mais confortável, a que se chama fortuna etc. não me preocupa. Eu quero viver bem, quero que os meus filhos estudem, quero não ter que mendigar. Mas a fortuna não me preocupa. Talvez isso possa ser lição das pessoas da nossa geração. A minha mãe, antes de morrer, dizia assim, se um dia a tua escola cair, o que é que tu fazes? Eu vou ficar pobre. Não tenho medo de ser pobre, porque já fui pobre. Já andei descalço até os 11 anos. Portanto, não me preocupa absolutamente nada. Neste momento, o que eu quero é que não caia. Portanto, é uma lição, é uma homenagem que eu presto à minha mãe.
AS: Mas sobre valores morais acho que hoje há muita obsessão pela ostentação. Temos uma elite muito ligada ao poder que domina instituições importantes que está focada na acumulação e, pior do que isso, na ostentação da sua falsa riqueza. Isto é um fenómeno que marca as crescentes desigualdades sociais dentro do nosso país. Como é que acha que os atuais candidatos a governar no Parlamento deveriam abordar estes assuntos?
LR: Há uma distorção bastante grande de valores porque há uma pulsão, por um lado, desta ostentação de sinais exteriores de riqueza e para dar vazão a esta pulsão, as pessoas tornam-se como hidras, são insaciáveis do ponto de vista material.
AS:E por isso são facilmente corruptivas.
LR: Completamente. Não é só nos dinheiros públicos. Temos no setor privado também, O setor privado acaba por se conluiar, com o setor público, fazendo uma perversão daquilo que se chama PPP ( Parceria Público Prrivada), ficando PPPC – Público Privado Perverso e Corrupto. Em particular nos concursos em que se faz sobre faturação. No fundo são dinheiros públicos que acabam por alimentar também o setor privado dessas pessoas e que, naturalmente, têm como exemplos a ostentação de sociedades no Dubai. Essas sociedades perfeitamente artificiais que acabam por ser, digamos, os seus paradigmas de comportamento. E, de facto, isso provoca imensa assimetria social, o que é uma grande preocupação.
O grande problema deste país é que a pobreza já se tornou endémica e se reflete na fome. Então, nenhum dirigente pode aspirar a governar este país sem fazer um discurso de ruptura, o que ainda não ouvi. Os discursos que eu ouço são essencialmente populistas que é uma coisa diferente. O discurso de ruptura com estratégias muito concretas ainda não ouvi.
O financiamento ao desenvolvimento precisa de uma atividade estruturada por instituições próprias
AS: Como empreendedor com uma visão social e pioneiro no ensino através da criação da primeira universidade privada e pioneiro como investidor numa instituição financeira de desenvolvimento que é a Gapi, o que nos aconselha sobre este espaço F4SD – Finanças para o Desenvolvimento Sustentável – que criámos como um espaço aberto para debate, porque ele também é seu, como devemos orientar este espaço,?
LR: Apesar desta postura do meu pensamento eu sou otimista. Tenho muitos amigos meus que estão completamente desiludidos e que acham que não vão continuar, vão-se embora. Há também um fenômeno interessante, muita gente da geração de 40 anos que também estão a sair do país, e não se deve ignorar isto, pois são jovens com competências técnicas que precisamos deles aqui, mas estamos a perder esses jovens. Têm filhos de 10, 12 anos e o argumento é sempre a educação e a saúde e vão-se embora, vão para países vizinhos ou então vão para Portugal ou para Reino Unido etc. onde calha. Eu quero continuar aqui. Por isso é que eu me autorizo a falar para poder contribuir para a mudança, porque se eu quisesse ir embora deixava de falar.
Instituições financeiras de desenvolvimento como a GAPI só vingam se não avançarem de uma forma kamikaze. Portanto, penso que este espaço em que estamos a conversar aqui, é um espaço privilegiado para tentar influenciar a opinião. A opinião é como como uma semente. Vai brotando e vai espalhando os grãos para formar um grande movimento de opinião que influencie as políticas públicas, porque sem políticas públicas correctas, por mais que lute, a Gapi não consegue mudar o país. Então, formar opiniões sobre as políticas públicas na área do desenvolvimento são importantíssimas.
Por exemplo, a base da nossa economia é a agricultura e nós sabemos que grande parte da agricultura é familiar, mas não há absolutamente nada sobre o financiamento da agricultura familiar, porque a Lei da Terra não permite que se transforme a terra num valor. E a Gapi, para poder entrar precisa que haja alguma coisa que lhe permita financiar essa agricultura. Por mais que a gente discuta, dizemos sempre, que não é possível financiar a agricultura a não ser através de projetos de parceiros de desenvolvimento. Mas isso são autênticas armadilhas, porque num projeto de cinco milhões de dólares quatro vão pagar os consultores e não sei o que mais e apenas com um milhão não vai servir para nada e os projetos acabam por morrer. Não é por aí. Não me parece que seja por projetos de parceiros de desenvolvimento. É preciso haver uma atividade estruturada por instituições especializadas
AS- …por instituições próprias para fazer isso, E essa foi a discussão que tivemos quando o professor abraçou a sua posição de investidor na Gapi.
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