Repensar o Sistema Financeiro para refundar o Estado Moçambicano
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Nos últimos meses, como nunca na história de Moçambique, temos beneficiado de uma onda de reflexão e debate sobre a crise que o país enfrenta. É amplamente reconhecido que o tsunami social causado pela disputa eleitoral não pode ser abafado se nos ativermos a medidas e concertações políticas focadas em contornar a crise pós-eleitoral. Vários destacados intelectuais interventivos alertam para a ultra-urgência de se apagar o fogo, sem ignorar que é urgente intervir na eliminação das causas.
O modelo e práticas de gestão do bem público geradores de pobreza generalizada, corrupção, exclusão social, económica e política e profundo desrespeito pelos direitos de cidadania têm de ser eliminados através da Refundação do Estado.
Aos olhos de muitos “o Estado moçambicano está a desmoronar”. Antes que se destrua por completo o projecto de um país chamado Moçambique é inadiável que as lideranças das principais organizações políticas, sociais e religiosas sejam suficientemente fortes e corajosas para participarem e aceitarem consensos que estabeleçam os caminhos e objectivos para se dar início ao processo dessa incontornável Refundação do Estado.
Na lista de objectivos sobre o que implica este processo destacam-se a despartidarização do Estado; descentralização política, legal e administrativa; independência dos órgãos eleitorais; separação efetiva de poderes entre as instituições que gerem a vida da Nação moçambicana; e, enfim, a recredibilização das instituições públicas.
A F4SD tem participado nestes debates – alguns dos quais reproduzidos nesta plataforma – e considera que o sucesso da Refundação do Estado depende da criação de condições para que esse processo seja suportado por uma profunda reforma do sistema financeiro.
Para um melhor entendimento do que se propõe convém uma breve retrospectiva histórica.
O “centralismo democrático” adoptado em 1977 com a conversão da Frente de Libertação em “partido único” implementou um sistema de planeamento central. Procedeu-se à estatização da banca, que permitiu ao Governo de então decidir centralmente como aplicar recursos públicos à luz da doutrina da “aliança operário camponesa”. Estas políticas e medidas foram feitas no quadro da primeira Constituição da República em que vigorou um sistema ultra-presidencialista e, durante o qual, assistiu-se ao que então se designou “escangalhamento do aparelho de Estado colonial”.
As adversidades enfrentadas pelo projecto socialista preconizado na primeira Constituição, induziram a subscrição, em 1985, das então na moda cartilhas do FMI e Banco Mundial e subsequentes políticas de “ajustamento estrutural” a partir de 1987. A função distributiva e alocativa do Estado foram reorientadas em benefício de uma elite emergente. A organização política que libertou Moçambique da colonização assumiu então um novo papel. Sob o mote “também temos o direito de ser ricos” esta organização transformou-se num centro de coordenação de lobbies para gerir os processos de apropriação de recursos públicos.
O modelo de “ajustamento estrutural” adoptado por Moçambique foi acarinhado por uma emergente elite que se ligou à Frelimo e consolidando-a como partido-Estado. A continuidade no poder tem sido assegurada através de uma “democracia-negociada”.
Ao longo de mais de três décadas realizaram-se sucessivas reformas constitucionais. Contudo, passo a passo, prevaleceram alterações constitucionais que, no dizer de Teodato Hunguana, estruturaram um “regime de centralismo presidencialista absoluto”. Num regime destes, para alguns homens de negócios e organizações movidos pela sede de apropriação e gestão de recursos públicos, o sucesso das suas agendas alimentou-se de afectos e proximidades com a “Corte Presidencial”.
A publicitação da imagem de gente acusada de ligações ao narcotráfico comprando um cachimbo do Chefe de Estado por um valor milionário, simbolizou uma nova aliança no poder em substituição da defraudada “aliança operário-camponesa”. Antigos dirigentes concederam aos seus filhos lugares cativos no Comité Central assegurando direitos de linhagem no acesso às benesses desse estatuto. Em matérias de concursos públicos para obras e fornecimento de serviços ao Estado organizados pela administração pública, assim como atribuição de licenças, em particular de recursos mineiros, a decisão passou a ser feita através de “connections” entre os “membros da corte”.
Na preparação do recente ciclo eleitoral, o acesso a meios financeiros para uma dispendiosa aquisição e oferta de dezenas de viaturas 4×4 de topo a membros seniores do partido-Estado a nível provincial, bem como o uso de múltiplos recursos e bens do Estado prenunciava “mais do mesmo”: uma “vitória retumbante” dessa aliança mutante!
A mais recente metamorfose da administração pública, em particular inscritas num chamado Novo Paradigma da Descentralização (Impissa, 2020) que impõe a presença do Estado central a todos os níveis, através de um representante do Estado e o controle centralizado dos fundos autárquicos evidencia o que o professor Lourenço do Rosário nos diz no talk que publicamos nesta plataforma: “Há barreiras de desconfiança e de interesses políticos que impedem descentralizar o centralismo e devolver o poder ao povo”.
Para devolver o poder ao povo é necessário que, em complemento às medidas acima descritas no âmbito da Refundação do Estado, se promova um sistema financeiro mais descentralizado e diversificado, em particular atendendo ao seguinte:
• É necessário que as autarquias tenham mais autonomia e capacidades para gerirem de forma transparente os recursos a que as suas comunidades têm direito;
• É urgente assegurar recursos para que as autarquias possam fornecer mais e melhores serviços públicos básicos na saúde, educação, água e saneamento;
• É necessário que os recursos para concessão de créditos não fiquem concentrados nos bancos comerciais que, por princípio, têm de operar com normas de gestão de risco inadequadas para sectores estratégicos no desenvolvimento da economia local;
• É indispensável que instituições financeiras paraestatais deixem de ser instrumentos camuflados do “centralismo democrático” ao serviço do partido-estado escapando ao rigor de auditorias profissionais independentes.
O que o “Movimento Cidadão” propõe como novos “Padrões e estruturas de desenvolvimento económico e social, e políticas macroeconómicas” é uma componente indispensável no projecto de Refundação do Estado. Porém, a sua exequibilidade depende da implementação de uma rede de instituições financeiras de desenvolvimento.
Há vários modelos e conceitos desse tipo de instituições e que variam conforme o objecto, estrutura acionista e quadro legal em que se inserem. Mas, em geral, todos têm como denominador comum que a sua gestão é blindada contra as interferências partidárias e governamentais. Em Moçambique, e tendo por objecto a gestão de fundos para promover pequenas empresas e start-ups de jovens empreendedores, o modelo que a Gapi implantada em todo o país oferece importante material de estudo e aprendizagem para a criação de réplicas adequadas ao momento que vivemos.
Assista o Talk através do link: