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Banco de Desenvolvimento: Debate Necessário para uma Mudança Estrutural

Opinião

Banco de Desenvolvimento: Debate Necessário para uma Mudança Estrutural

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Por António Souto *

Oportunidade e riscos de um debate

O Governo anunciou a intenção de criar um Banco Nacional de Desenvolvimento (BND) e, desta vez, fez um apelo a um debate público participativo. A iniciativa merece ser aplaudida, pois ocorre num momento em que a economia moçambicana se encontra estagnada, desestruturada, com um sector produtivo nacional débil e com um sistema financeiro que, em vez de catalisar, se tornou um factor de estrangulamento.

Estamos em 2025, perante uma conjuntura que exige medidas inovadoras, mas também prudentes. A história recente mostra que decisões estruturais tomadas sem debate trouxeram consequências duras. Um exemplo claro é a adoção, em 2013, das normas internacionais de Basileia II – um processo conduzido sob pressão do FMI e sem qualquer consulta pública. O contraste com o convite ao debate sobre o BND é notável e positivo. Mas também revela uma coincidência curiosa: tal como em 2012/2013, estamos perante uma nova missão do FMI em Moçambique (que hoje dia 29 de Agosto termina o seu trabalho sem ainda conhecermos o que vai levar para Washington) , após anos de programas de orientação ultraliberal cujos resultados económicos, sociais e políticos são hoje visíveis.

O que nos ensinou “Basileia II”

É inquestionável que precisamos de regulação prudencial robusta. A crise financeira global de 2008 mostrou como a ausência de normas como Basileia II e III pode resultar em falências bancárias sistémicas, perdas devastadoras para famílias e empresas, e elevados custos fiscais. Sem Bancos Centrais reguladores fortes, estamos todos expostos a riscos sistémicos.

No caso de Moçambique, a adoção de Basileia II implicou ajustes obrigatórios de grande peso nos rácios prudenciais dos bancos:

  • Rácio de Adequação de Capital (CAR) mínimo fixado em 12%, acima do padrão internacional de 8%.
  • Tier 1 (capital de melhor qualidade) exigido em pelo menos 10%.
  • Buffers adicionais impostos aos bancos de importância sistémica doméstica (D-SIBs).
  • Rácio de Liquidez de 20% (ativos líquidos sobre passivos de curto prazo), aplicado diariamente.

Estes requisitos reforçaram a solidez do sistema bancário, mas tiveram impactos restritivos no crédito produtivo. Ao aumentar a ponderação de risco para carteiras sem garantias sólidas – como agricultura e MPMEs – os bancos passaram a privilegiar liquidez e títulos públicos, retraindo-se de financiar sectores de maior risco. O resultado foi a exclusão financeira de sectores que mais precisavam de crédito para dinamizar emprego e transformar a economia rural.

Esta experiência mostra bem como regulação é necessária, mas não suficiente. É preciso diferenciar entre bancos comerciais – que lidam com depósitos do público – e instituições financeiras de desenvolvimento, cujo papel é assumir riscos em nome do desenvolvimento, mobilizando fundos concessionais e investimentos de longo prazo.

Mais do que copiar modelos externos

No debate sobre o BND, tem sido comum ouvir referências a exemplos externos – África do Sul, China, Indonésia, Brasil. É verdade que estes países têm bancos de desenvolvimento fortes e estruturantes. Mas não basta citar que eles existem para justificar que Moçambique também deve ter um.

As avaliações recentes da Associação Africana de Instituições Financeiras de Desenvolvimento (AADFI) – da qual a Gapi é a única entidade moçambicana participante – mostram que um número significativo de bancos de desenvolvimento africanos enfrenta problemas graves de sustentabilidade, justamente por causa da interferência política e da falta de governação independente.

Ou seja, ter um BND não é por si só garantia de sucesso. Pelo contrário: sem blindagens institucionais, um BND pode rapidamente tornar-se mais um veículo de politização e captura de recursos, em vez de um catalisador de desenvolvimento.

Confiança e transparência: a questão incontornável

A questão central não é apenas “precisamos ou não de um BND?”, mas sim: como garantir que os recursos que o alimentam são usados com transparência, rigor e responsabilidade?

A experiência recente de Moçambique traz lições dolorosas:

  • As chamadas “dívidas ocultas”, no valor de 2 mil milhões de dólares, contraídas por entidades estatais em nome do Estado, continuam a reduzir o espaço orçamental para saúde, educação e investimento social.
  • O programa popularmente conhecido como 7 Bisresultou na distribuição de milhões de dólares sem retorno, com forte contaminação político-partidária.
  • Diversos fundos estatais criados em ministérios têm servido para mordomias e apropriação privada, em vez de impulsionar desenvolvimento.

É por isso que a criação do BND deve estar incontornavelmente ligada a regras de governação robustas:

  • Contas elaboradas segundo Normas Internacionais de Relato Financeiro (IFRS).
  • Auditorias externas independentes.
  • Direito do público – que paga impostos – de questionar a gestão.

Sem estas condições, um BND arrisca-se a ser mais um “elefante branco” a delapidar recursos públicos.

Mais do que um banco: um sistema de instituições

O desenvolvimento inclusivo não se faz apenas com uma instituição centralizada. O país precisa de um sistema de instituições financeiras de desenvolvimento, em que o BND deve actuar como uma peça central para projetos de grande vulto (barragens, estradas, ferrovias, portos), mas coexistindo e interagindo com instituições de proximidade, capazes de apoiar MPMEs, cooperativas e empreendedores locais.

A exclusão financeira em Moçambique é dramática:

  • Menos de 4% do crédito total vai para a agricultura, apesar deste sector empregar mais de 70% da população.
  • As MPMEs representam 98% do tecido empresarial, mas apenas uma minoria ínfima consegue aceder a crédito de médio e longo prazo.
  • Em zonas rurais, a esmagadora maioria dos pequenos produtores e empreendedores depende de esquemas informais de financiamento, muitas vezes com taxas usurárias.

É aqui que instituições como a Gapi-SI desempenham um papel crucial: presença territorial consolidada, cultura própria e um histórico de décadas no apoio a micro e pequenas empresas, empreendedores e cooperativas. O reforço da Gapi não é contraditório com a criação do BND. Pelo contrário, é condição necessária para que o BND não seja apenas um colosso distante da economia real.

Um BND forte deve articular-se com instituições de desenvolvimento de primeiro piso, que atuem em todo território e junto das comunidades. Só assim se pode responder à urgência de gerar empregos, criar empreendedores e transformar localmente os recursos naturais.

O legado histórico e a visão de futuro

Moçambique já experimentou, nos anos 1980, a busca por instrumentos financeiros de desenvolvimento. Refiro-me ao início da relação com as instituições de Breton Woods e implementação do Programa de Reabilitação Económica – Ajustamento Estrutural-. Sob liderança de Mário Machungo, o Governo entendeu que era preciso criar uma instituição financeira de desenvolvimento que não fosse um simples departamento ministerial nem inteiramente privada. Daí nasceu a Gapi, em modelo híbrido público-privado, com capacidade de atrair co-investidores e a capacidade e obrigação de prestar contas.

Esse modelo sobreviveu até hoje porque conseguiu combinar três elementos: credibilidade, sustentabilidade e foco em desenvolvimento.

Se agora se fala em criar uma nova Lei para o BND, que seja para integrar e articular com entidades vivas no sistema existente que, embora reprimidas à luz das regras de Basileia II e III têm conseguido provar no terreno, que podem desempenhar um papel chave no fomento de MPMEs.

Um BND que centralize apenas recursos dispersos de ministérios e parceiros, sem coerência estratégica na edificação de um sistema financeiro que de facto contribua para a ambiciosa agenda da estratégia nacional de inclusão financeira lançada há 3 semanas pela Ministra das Finanças e Governador do BdM, corre o risco de ser uma repetição de erros do passado. A verdadeira ambição deve ser criar um ecossistema financeiro de desenvolvimento coerente, transparente e complementar.

Conclusão

Moçambique não precisa de mais promessas políticas. Os debates são necessários, mas não podem ser organizados para justificar decisões já tomadas. Precisamos de participar na formulação de decisões fundamentadas, ajustadas à realidade e capazes de mobilizar recursos e competências para o desenvolvimento inclusivo.

Um Banco de Desenvolvimento pode ser parte da solução, mas apenas se:

  • tiver governação independente e transparente;
  • for parte de um sistema de instituições complementares, que inclua e fortaleça entidades já existentes;
  • diferenciar entre o financiamento de grandes projetos estruturantes e o apoio de proximidade às MPMEs e empreendedores rurais.

Sem estas condições, arriscamo-nos a criar mais um elefante branco. Com elas, podemos construir uma alavanca estratégica para a industrialização, a criação de emprego e a transformação da economia.

Não basta um Banco de Desenvolvimento. É preciso debater como edificar um sistema financeiro que catalise o investimento produtivo e induza transformações estruturais da economia.

  • António Souto é Economista fundador da Gapi e actual presidente da Associação Moçambicana de Microfinanças

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