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Banco de Desenvolvimento em Moçambique: Necessidade ou Ilusão?

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Banco de Desenvolvimento em Moçambique: Necessidade ou Ilusão?

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O economista António Souto entra no debate sobre a criação de um Banco de Desenvolvimento em Moçambique, levantando questões cruciais sobre sua viabilidade, impacto e necessidade. Em meio a desafios económicos e sociais, Souto explora os prós e contras dessa instituição, questionando se o país está preparado para implementá-la e quais seriam os caminhos para garantir sua eficácia. Acompenhe uma entrevista que ele concedeu à Carta de Moçambique.

– Carta de Moçambique – O país precisa de um banco de desenvolvimento?

António Souto: A proposta de criação de um banco de desenvolvimento levanta uma questão legítima e relevante: que tipo de instrumentos o país precisa para financiar e impulsionar o seu desenvolvimento económico e social? A resposta a esta pergunta não pode ser automática nem simbólica — precisa de ser precedida por um exercício sério de definição de prioridades, avaliação de capacidades e clarificação de mandatos institucionais.

Moçambique precisa, sem dúvida, de um sistema de financiamento ao desenvolvimento mais eficaz, acessível e alinhado com os objectivos de industrialização, modernização da agricultura, geração de emprego e redução das desigualdades regionais. Mas é necessário perguntar, com rigor:

  • O que, em termos muito concretos, se pretende desenvolver?
  • De onde virão os fundos para financiar essas prioridades?
  • É mesmo necessário criar uma nova instituição para gerir esses fundos?

Já há umas duas décadas foi criado um banco estatal, o BNI. Contudo, o BNI não tem demonstrado nem vocação nem estrutura adequada para responder às necessidades do tecido empresarial nacional. A sua actuação tem sido limitada, tanto em escala como em impacto.

Deve ser discutido com transparência o porquê de se avançar com a ideia de uma nova instituição, antes de se fazer uma avaliação pública e técnica das limitações do BNI e do potencial de outras instituições, como a Gapi.

Portanto, a questão “precisamos de um banco de desenvolvimento?” só pode ser respondida com responsabilidade depois de se responder a perguntas ainda mais fundamentais sobre a estratégia de desenvolvimento do país, os meios disponíveis e os instrumentos mais adequados. Só então se poderá determinar se uma nova instituição com estatuto de banco é necessária — ou se estamos perante um risco de dispersão institucional e duplicação de estruturas.

– CM – Como seria eficiente tal banco, para que fosse uma solução sólida?

AS: A eficiência de um eventual banco de desenvolvimento dependerá, antes de tudo, da clareza quanto ao seu modelo institucional e operacional. Não é possível garantir uma solução sólida sem definir, em primeiro lugar:
que tipo de instituição se pretende criar.

Se for um banco estatal de primeiro piso, ou seja, que concede crédito diretamente a MPMEs, isso levanta desafios sérios de sustentabilidade financeira e governação ética. Em muitos contextos — e Moçambique não é exceção — sabe-se que:

Os mutuários, ao lidarem com uma instituição estatal, tendem a associar o crédito ao “dinheiro do Estado” e relaxam no cumprimento das obrigações;

Os gestores dessas instituições estatais, sem claros incentivos de performance e protegidos por uma cultura burocrática, muitas vezes agem com complacência ou mesmo conivência com o incumprimento.

Esse risco moral mina a sustentabilidade do banco e descredibiliza a política pública de desenvolvimento. Por isso, uma solução sólida exige mais do que vontade política: exige um modelo institucional viável, capaz de combinar:

Missão clara e limitada a áreas onde há falha de mercado (ex. agroindústria, juventude, inovação);

Modelo operativo robusto, preferencialmente baseado em parcerias com instituições financeiras que já operam localmente, em vez de o banco estatal fazer retalho direto;

Critérios de responsabilização pelos créditos concedidos.

Governação mista e independente, com participação de entidades privadas ou multilaterais, para mitigar interferências políticas e introduzir disciplina de mercado;

Critérios técnicos de avaliação de risco e sistemas transparentes de acompanhamento, mitigação de riscos  e recuperação de crédito.

Critérios de supervisão  pelo banco central- Sistema de indicadores prudenciais  específicos;

Os exemplos internacionais mais eficazes mostram que a eficiência não depende de estatuto legal, mas de desenho institucional inteligente e bem contextualizado.

Criar um banco que seja simultaneamente estatal, descentralizado, com foco em MPMEs e capaz de cobrar eficientemente é, em qualquer parte do mundo, uma equação difícil. Em Moçambique, onde o Estado ainda revela fragilidades institucionais significativas, essa dificuldade é agravada. Por isso, a eficiência começa por evitar erros de concepção.

– CM – Qual seria o perfil dos beneficiários/clientes de tal banco?

AS: Num modelo eficaz e sustentável, um banco de desenvolvimento não deve atuar diretamente como financiador de retalho, mas sim como instituição de segundo piso, que mobiliza recursos e financia programas estratégicos com impacto multiplicador. Esses fundos devem ser acompanhados por instrumentos financeiros adequados de mitigação de riscos que vão permitir uma maior abrangência e inclusão

Nesse contexto, os seus beneficiários diretos seriam:

Governos locais e centrais, responsáveis por executar programas de infraestruturas económicas e sociais;

Instituições financeiras intermediárias (como instituições financeiras de desenvolvimento operando no retalho, cooperativas de crédito, sociedades de microfinanças e até plataformas digitais), capacitadas para chegar a micro, pequenas e médias empresas (MPMEs);

Organizações de incubação de novas empresas, agências de desenvolvimento local, quando habilitadas para canalizar responsavelmente fundos orientados ao empreendedorismo, juventude, mulheres ou agricultura familiar.

Já os beneficiários finais — que o banco não financia diretamente, mas aos quais gera impacto — seriam:

As MPMEs com potencial de crescimento;

Jovens empreendedores;

Promoção da integração da mulher nos negócios;

Cooperativas e iniciativas agroindustriais locais;

Projectos de inovação e inclusão económica em zonas periféricas.

Este modelo de actuação reduz os riscos de inadimplência direta, evita sobreposição institucional e permite maior eficiência na alocação de recursos, desde que exista uma rede sólida de parceiros operacionais e mecanismos de supervisão descentralizada. A função do banco seria, assim, construir e alimentar essa rede, garantir a coerência estratégica dos financiamentos e avaliar o seu impacto no desenvolvimento.

– CM – O Presidente da República tem feito um paralelo com a iniciativa dos “sete milhões”, para validar a necessidade de tal banco. É uma analogia feliz, tendo em conta que os empréstimos desse esquema tinham quase zero retorno para o Estado, perdendo o seu efeito multiplicador?

AS: A analogia com a iniciativa dos “sete milhões” é compreensível enquanto tentativa de mostrar preocupação com o financiamento local e a inclusão económica. Contudo, do ponto de vista técnico e institucional, é uma analogia arriscada. O programa dos sete milhões fracassou precisamente porque misturava objectivos de inclusão com mecanismos informais e frágeis de crédito público, sem critérios claros de avaliação,  instrumentos de mitigação,   responsabilização dos mutuários e com elevada interferência política.

Repetir essa lógica, mesmo sob uma nova designação, seria caminhar para o mesmo desfecho.

Um verdadeiro banco de desenvolvimento não pode funcionar como um distribuidor de crédito popular, nem ser usado como instrumento de clientelismo. A sua função deve ser mobilizar e gerir recursos de médio e longo prazo para financiar programas com impacto transformador — como o desenvolvimento agroindustrial, a inovação empresarial ou a transição energética — operando através de instituições locais capacitadas e com mecanismos rigorosos de execução, mitigação de riscos, acompanhamento, controle e monitoria.

Assim, em vez de repetir a estrutura do passado, a prioridade deve ser corrigir os erros cometidos e desenhar um sistema de financiamento descentralizado, tecnicamente sólido e institucionalmente responsável. Isso implica uma nova cultura de crédito, assente na confiança, mas também na disciplina, e com fortecapacidade de avaliação de resultados.

– CM – Um banco de desenvolvimento não seria um desperdício, tendo em conta que o Estado já conta com o Banco Nacional de Investimento (BNI)?

AS: Apesar de ter sido criado com ambição de apoiar grandes investimentos estratégicos, o BNI tem-se limitado a ser receptor de fundos públicos de programas governamentais, sem capacidade técnica, visão estratégica ou rede operacional para os aplicar eficazmente. A sua actuação tem sido pontual, sem escala nem impacto, e sem qualquer inserção no financiamento do tecido económico de base.

Nesse sentido, a questão central não é apenas se já existe um banco estatal, mas sim: É o BNI convertível num verdadeiro banco de desenvolvimento? Com que missão? E, se for, em que condições? Seria um banco 100% estatal? Atuaria em primeiro ou segundo piso? Teria capacidade interna, governação e mandato para assumir essa função com credibilidade e sustentabilidade?

O risco de tentar construir algo novo sobre uma base institucional frágil e carregada de problemas financeiros e de gestão pode comprometer o sucesso de qualquer iniciativa futura.

– CM – Há quem argumente que seria um passo em falso criar um Banco de Desenvolvimento quando ainda não está totalmente saldado o passivo de experiências amargas na área financeira, como foi o BPD. Compartilha dessa opinião?

AS: A experiência do BPD deve ser analisada com rigor e com sensibilidade ao contexto em que essa instituição foi criada e operou. O BPD resultou da nacionalização e reestruturação de várias instituições financeiras coloniais, algumas das quais já tinham práticas ligadas à promoção de pequenos negócios agrícolas. Contudo, logo após a independência, foi colocado ao serviço de uma agenda política marcada por fortes constrangimentos: guerra civil, escassez de quadros, ausência de mercados internos e um Estado ainda em construção.

Apesar dessas dificuldades, o próprio governo reconheceu as limitações do modelo do BPD e tomou a iniciativa de através desse banco de desenvolvimento apoiar a criação da Gapi como entidade especializada focada nos desafios de promover a iniciativa empresarial privada, o surgimento de uma classe média assente em MPMEs. Já em várias ocasiões enalteci a visão do então primeiro-ministro, Mário Machungo e da administração do BPD, em particular Hermenegildo Gamito. Essa visão teve o mérito de em vez de se criar uma coisa completamente nova, foi capaz de converter e consolidar o projecto da Fundação Friedrich Ebert (GAPI – Gabinete de Apoio à Pequena Indústria) que combinava capacitação e financiamento numa sociedade financeira nacional – Gapi,Lda. Ou seja, mesmo no seio de uma experiência marcada por interferências políticas e problemas de sustentabilidade, emergiu uma solução inovadora e mais ajustada ao novo ciclo económico. O BPD também foi chamado a financiar sectores como o agrário, duramente afectados pela guerra, assumindo riscos em condições que ultrapassavam o controlo técnico de qualquer instituição financeira tradicional.

Por isso, o desempenho de bancos de desenvolvimento, especialmente quando são inteiramente estatais, deve ser analisado para além dos indicadores financeiros, incorporando os contextos históricos, políticos e sociais em que operam. As lições do BPD não são um obstáculo à criação de novas instituições — são uma fonte de sabedoria para estruturar melhor as futuras.

– CM – Acha que um possível Banco de Desenvolvimento tinha que ser 100% estatal ou seria importante compartilhar o risco com o sector privado?

AS: Um banco de desenvolvimento não precisa ser 100% estatal para ser uma instituição de interesse público. O que define esse carácter não é apenas a composição do capital ou a presença de funcionários públicos nos órgãos de gestão, mas sim o compromisso da instituição com a concepção e implementação de programas que respondam às prioridades estratégicas do país.

Nesse sentido, é não só desejável como recomendável que o banco tenha uma estrutura de capital mista, com presença do Estado, mas também de parceiros privados ou multilaterais. Isso permite:

Partilhar o risco financeiro;

Introduzir maior rigor técnico e disciplina de mercado;

Fortalecer a independência institucional face a ciclos políticos.

O essencial é garantir que o Estado tenha instrumentos claros para repassar recursos e contratualizar objectivos de desenvolvimento com a instituição — seja ela maioritariamente pública ou não. Essa contratualização pode ser feita através de programas, fundos temáticos ou linhas de financiamento com critérios públicos e metas verificáveis.

A própria Gapi, com mais de três décadas de experiência, é um bom exemplo de que é possível conciliar missão pública com governação partilhada, num modelo onde a presença do Estado é relevante, mas não totalizante, e onde há espaço para actores que trazem inovação, exigência e proximidade geográfica e cultural aos públicos-alvo.

O desafio, portanto, não é assegurar controlo estatal absoluto, mas sim assegurar um mandato público claro, mecanismos de coordenação eficazes e uma cultura de responsabilidade partilhada.

– CM – Ao invés de se criar de zero uma instituição financeira com o propósito de financiar o desenvolvimento, não seria menos dispendioso usar experiências que já existem, como, por exemplo, a Gapi?

AS: Antes de criar uma nova instituição, é essencial analisar se não existe já capacidade instalada que possa ser reforçada e melhor orientada. A Gapi é um exemplo concreto: ao longo de mais de três décadas, consolidou uma rede nacional de serviços financeiros para MPMEs, operando com flexibilidade como retalhista, grossista e parceiro técnico de programas públicos e internacionais.

No entanto, para que a Gapi possa cumprir um papel ampliado como instrumento de financiamento ao desenvolvimento, é fundamental manter a sua natureza institucional híbrida e não a converter numa entidade estatal. O seu carácter de interesse público deriva não da posse estatal, mas da missão que assume através de contratos e acordos que regulam a aplicação de recursos em programas de desenvolvimento nacional.

Além disso, o reforço da Gapi deveria prever a criação de instrumentos complementares que o país hoje não dispõe de forma estruturada — como uma entidade especializada em capitalização de PME estratégicas. Empresas com potencial para integrar cadeias de valor em sectores-chave precisam de mais do que crédito: precisam de equity para crescer de forma sustentável. Uma subsidiária da Gapi, com governação independente e enquadramento legal próprio, poderia preencher essa lacuna, tirando partido da vasta rede territorial da Gapi, do seu conhecimento do mercado e da proximidade com operadores com real potencial de crescimento. Esta estrutura especializada teria também a função de atrair investidores focados em instrumentos de capital (equity), e não apenas em crédito, criando um novo espaço para capitalização de empresas estratégicas com transparência e rigor técnico.

Portanto, aproveitar e reforçar a Gapi não é apenas uma opção menos dispendiosa — é uma alternativa institucional mais eficaz, ágil e alinhada com as necessidades do país. Reforçá-la é também uma forma de valorizar o que já funciona e evitar o custo político, financeiro e social de começar do zero.

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